Inscrições podem ser o ‘manual de instruções’ ilustrado mais antigo da história, dizem especialistas.
Por Galileu; Super Interessante.
Uma equipe de arqueólogos encontrou uma espécie de “manual de instruções” para o submundo egípcio, segundo um estudo publicado no Journal of Egyptian Archaeology. Os registros têm ao menos 4 mil anos e são, provavelmente, o “livro” ilustrado mais antigo da história.
O “guia” dá as instruções necessárias para que as almas dos mortos consigam deixar os corpos e chegar a Rostau, o reino do deus da morte Osíris. Esse livro já era conhecido anteriormente, e é chamado de “Livro dos Dois Caminhos”. Essa espécie de manual de instruções para que espíritos deixassem o corpo sem vida, como o nome adianta, mostrava que existiam duas vias principais – por terra e pelo mar. Mas nenhuma delas era lá muito tranquila. Para dar um final feliz à sua jornada e conquistar a vida eterna em um julgamento comandado pelo próprio Osíris, almas tinham de enfrentar demônios e atravessar anéis de fogo do submundo.
Para Rita Lucarelli, especialista em egiptologia da Universidade da Califórnia, essa obra é um exemplo do quanto o povo do Antigo Egito refletia sobre a mortalidade. “Os egípcios eram obcecados com a vida em todas as suas formas”, disse, em entrevista ao The New York Times. “Para eles a morte era uma nova vida.”
As duas jornadas descritas nos livros eram verdadeiras odisseias: as almas deveriam enfrentar tarefas complicadas, como confrontar demônios, atravessar o fogo, dentre outras provações hercúleas. De acordo com Harco Willems, autor do estudo, o sucesso na vida após a morte exigia aptidão para a teologia misteriosa, tal como o domínio de feitiços e o conhecimento do submundo em seus mínimos detalhes.
Por isso o “Livro dos Dois Caminhos” era tão importante. Afinal, chegar ao reino de Osíris dava às almas a oportunidade de passar por um tribunal que, se decidisse a favor do espírito, o tornaria um deus imortal.
O mais antigo
De acordo com arqueólogos, décadas de escavações só revelaram 25 cópias desse guia mortuário
Harco Willems encontrou a tumba em um complexo com outros sarcófagos já estudados no Egito, mas como a instalação estava abaixo do local escavado anteriormente, ele acredita que os outros arqueólogos tenham ignorado aquela parte do mausoléu. Infelizmente, a maior parte do conteúdo da tumba havia sido saqueado ou destruído por fungos, mas dois painéis de cedro continuavam lá.
Analisando as inscrições na madeira apodrecida, Willems percebeu que aqueles registros eram uma versão do “Livro dos Dois Caminhos”. Além disso, ele notou que os escritos se referiam ao reinado do faraó Mentuhotep II, que governou até 2010 A.C. Segundo ele, isso sugere que o “guia” fora escrito ali antes de qualquer outro livro do tipo já encontrado.
O conceito de “livro” usado pelos pesquisadores é diferente daquele que conhecemos hoje – que se popularizou na Europa a partir do século 15, com a prensa de Gutenberg. No Egito Antigo, manuais funerários do tipo eram entalhados e pintados na madeira dos sarcófagos.
A descoberta mais recente estava na porta da tumba que guarda os restos mortais de Ankh, uma mulher egípcia de classe abastada. Boa parte do conteúdo da tumba acabou sendo saqueado ou deteriorado pela ação de microrganismos. Na tampa de cedro do caixão, por exemplo, havia figuras gravadas com tinta e hieróglifos feitos à faca – e coloridos, depois, nas cores preta ou vermelha. O que restou do manual de instruções foram os fragmentos que você vê abaixo.
De acordo com o especialista, cada uma das versões desse “manual” tem particularidades. No caso dessa, o começo do texto está cercado por uma linha vermelha designada como “anel de fogo”. “O escrito é sobre o deus do sol passando por esse anel protetor de fogo para alcançar Osíris”, explicou Willems.
Apesar de pertencer a alguém do gênero feminino, o sarcófago em questão trazia uma peculiaridade: a versão do Livro dos Dois Caminhos cravada nele estava escrita como se aconselhasse o espírito de um homem. De acordo com os pesquisadores, a hipótese mais provável é que a versão original do texto tivesse Osíris como protagonista – o que fez com que a cópia mantivesse os pronomes de tratamento masculinos. Se esse problema de transcrição dificultou ainda mais a tarefa a ser cumprida pela alma de Ankh em sua trajetória pós-morte, isso já é outra história.