Crise do lixo. O que fazer com os resíduos que a China parou de comprar?

Decisão chinesa de deixar de reciclar garrafas de plástico e caixas de papelão descartadas mundo afora desencadeou uma crise internacional. A busca por novos destinos continua.

Fontes: BBC; DW.


Resíduos são despejados a poucos metros de uma plantação de palmeiras em Jenjarom (Foto – BBC)

A fumaça tóxica que paira sobre o pequeno vilarejo de Jenjarom, nos arredores da capital da Malásia, Kuala Lumpur, é especialmente densa à noite, quando as usinas de reciclagem perto dali começam a derreter lixo plástico.

“O cheiro é horrível, e a fumaça faz mal para os nossos pulmões”, afirma a moradora Lay Peng, de 47 anos. “Ninguém pode escapara da fumaça tóxica. Essa é a pior parte.”

Peng afirma que centenas de toneladas de lixo plástico são incineradas regularmente de maneira ilegal a apenas um quilômetro de sua casa. Seus três filhos desenvolveram asma, e o marido foi hospitalizado com câncer de pulmão.


A cidade de Jenjarom agora se tornou sinônimo de resíduos plásticos. Foto BBC

Há um ano e meio, Jenjarom vem importando cada vez mais resíduos plásticos para reciclá-los e incinerá-los, em meio a crise global de lixo.

Poderia ter sido qualquer cidade, mas a proximidade de Jenjarom de Port Klang – maior porto do país e porta de entrada da maior parte das importações de plástico – tornou o local ideal. De janeiro a julho de 2018, cerca de 754 mil toneladas de resíduos plásticos foram importados pela Malásia.

As usinas ilegais de reciclagem de plástico começaram a surgir, na esperança de obter lucro rápido com a promissora indústria de reciclagem, avaliada em mais de 3 bilhões de ringgits malaios (cerca de R$ 2,7 bilhões).

De acordo com o Conselho de Estado, havia 33 fábricas ilegais em Kuala Langat – distrito em que a cidade de Jenjarom está localizada. Algumas foram instaladas perto de densas plantações de dendê, outras mais perto da cidade.

Mas levaria meses até os moradores tomarem conhecimento da sua existência – só perceberam depois que os sintomas começaram a aparecer.


Resíduo em decomposição é depositado em água coberta de musgo em usina ilegal de reciclagem de plástico. Foto BBC

O resíduo plástico é normalmente reciclado em pellets (grânulos milimétricos de resina plástica), que podem ser usados para fabricar outros tipos de plástico.

Nem todo plástico pode ser reciclado, então as usinas de reciclagem precisam enviar o material não-reciclável ​​para centros de descarte – algo que custa dinheiro.

Mas muitas usinas ilegais preferem descartar o resíduo sem pagar nada, de forma insalubre – enterrando, ou mais comumente, queimando.

Outra moradora, Ngoo Kwi Hong, conta que a fumaça da incineração provocou uma tosse tão violenta que ela chegou a cuspir um coágulo de sangue.

“Eu não conseguia dormir à noite porque era muito fedorento. Virei um zumbi, estava muito cansada”, diz Ngoo.

“Só mais tarde descobri que havia usinas em volta da minha casa – ao norte, sul, leste, oeste.”

Aqueles que moravam mais perto das usinas foram os mais afetados.

Belle Tan, que descobriu que havia uma usina ilegal a apenas 1 km da sua casa, revela o impacto no filho de 11 anos.


Belle Tan diz que o corpo do filho foi tomado por erupções cutâneas. Foto – BBC

“Ele teve uma erupção cutânea muito grave na barriga, no pescoço, nas pernas e nos braços. A pele dele continuava descascando, doía até quando tocávamos nele. Eu estava com raiva e temerosa pela saúde dele, mas o que eu podia fazer? O cheiro estava por toda parte.”

Tudo começou em julho de 2017, numa reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Genebra, na qual Pequim anunciou que reduziria suas importações de resíduos plásticos e de papel.

Até então, a China importava mais da metade do lixo plástico do mundo para reciclá-lo, juntamente com uma parcela significativa de resíduos de papel – 60% dos gerados nos EUA e mais de 70% dos da Europa. Pequim justificou a decisão de cortar as importações com argumentos ambientais e afirmando querer proteger a saúde de seus cidadãos.

A medida fez com que o sistema global de reciclagem entrasse em colapso e inaugurou uma nova era da gestão de resíduos. Uma era em que metade do mundo – incluindo EUA, Canadá, Europa, Japão e Coreia do Sul – foi obrigada a buscar novos aterros sanitários para seu lixo.

“Foi um grande choque para a indústria global de reciclagem“, afirma Arnaud Brunet, do Escritório Internacional de Reciclagem (BIR, na sigla em inglês), sediado em Bruxelas.


Preço do lixo despenca

A decisão da China teve amplas consequências. Nos meses após a medida, a Malásia, por exemplo, triplicou suas importações de lixo plástico.

Também ocorreu uma mudança drástica na oferta e na demanda. Em 2018, o preço de resíduos mistos de papel caiu de 75 para apenas alguns dólares por tonelada. O comércio de lixo entre a China e os EUA chegou a cair 38%, ou 3,5 bilhões de dólares.

O lixo tinha que ir para algum lugar, e os países desenvolvidos tinham esgotado suas capacidades de reciclar suas milhões de toneladas de plástico e papel – especialmente porque o plástico não pode ser completamente reciclado.

Comerciantes de lixo desesperados foram forçados a procurar novos clientes, e os encontraram no Sudeste Asiático, em lugares como Malásia, Tailândia, Vietnã, Indonésia e Índia – países com menos regulamentações de importação e controles menos rigorosos, ou até sem controle algum.

De acordo com um relatório do Banco Mundial de setembro de 2018, mais de 90% do lixo de países de baixa renda é “frequentemente descartado em lixões não regulamentados ou queimado a céu aberto… com graves consequências para a saúde, a segurança e o meio ambiente“.

Somente 10% do lixo é de fato reciclado – muitas vezes fazendo com que trabalhadores e moradores dos entornos adoeçam e matando plantas e animais.

Alguns países, no entanto, incluindo Tailândia, Malásia e Indonésia, decidiram que não querem mais ser a lixeira do mundo. Nos últimos meses, eles introduziram novas restrições à importação de resíduos para lidar com a nova situação após a decisão da China.

O governo da Indonésia baniu a importação de certos tipos de resíduos plásticos de países ocidentais para “minimizar a possibilidade de degradação ambiental e de ecossistemas causada pelo lixo”. A embaixada da Indonésia em Bruxelas afirmou à DW que a questão dos resíduos é um desafio.

“Apesar das restrições às importações, resíduos plásticos mistos ainda estão entrando no país [Indonésia] em contêineres. O contrabando de resíduos está florescendo, e governos estão sobrecarregados com a fiscalização”, afirma Heng Kiah Chun, do Greenpeace Ásia.

Jospeh Pickard, economista-chefe do Instituto das Indústrias de Reciclagem de Sucata, em Washington, afirma que as restrições asiáticas ao mercado americano já tiveram consequências perceptíveis.

“Hoje, muito maisplástico acaba em aterros sanitários e incineradores nos EUA do que há um ano”, diz. Pickard vê a situação como uma oportunidade para investir mais em instalações de reciclagem locais e tecnologia.

“Temos que entender que também se trata de um recurso que pode gerar lucro É aí que reside o ponto crucial para mudança, inclusive em nível local”, afirma.

China menos dependente 

Na União Europeia (UE), as exportações de resíduos plásticos diminuíram desde a decisão da China. Está sendo discutida pelos 28 países-membros do bloco uma proposta da Noruega de alterar a Convenção de Basileia – que controla o fluxo internacional de resíduos – e dificultar significativamente a exportação de plásticos mistos pouco recicláveis.

Uma fonte da UE em Bruxelas disse à DW que a proposta foi bem recebida, mas ressaltou que ela deve ser realista.

“Tememos que uma proibição à exportação de resíduos plásticos possa ser desvantajosa para alguns Estados-membros e o meio ambiente local”, afirmou a fonte, apontando que nem todos os países-membros da UE têm capacidade para reciclar plásticos adequadamente.

Mas isso não é mais problema da China. Depois de anos de crescimento econômico e aumento do consumo, a população chinesa de 1,4 bilhão de habitantes produz resíduos suficientes para abastecer as usinas de reciclagem do país.

“A China está desenvolvendo seus próprios sistemas de coleta, separando e reciclando o lixo local”, afirma Brunet. “A China está ficando independente do nosso lixo.”


No entanto, o país também exporta resíduos que tem dificuldade em reciclar. Durante muitos anos, Hong Kong foi um dos dez maiores exportadores de lixo plástico para a Malásia.

De acordo com a agência de notícias oficial chinesa Xinhua, a China pretende banir ou reduzir significativamente a importação de oito categorias adicionais de resíduos até o fim de 2019. Estas incluiriam eletrodomésticos, sucata de aço de navios, peças de carros e madeira.

O que a China ainda importa de bom grado é plástico reciclado – cada vez mais proveniente de empresas chinesas que se estabeleceram em países vizinhos do Sudeste Asiático na esperança de lucrar com a proibição de importações.

Desde o segundo semestre de 2017, várias usinas de reciclagem surgiram, em diversos países, como no caso da Malásia, muitas delas administradas por empresas chinesas. E a fumaça tóxica que antes pairavam sobre a China agora contamina lugares como Jenjarom. Mesmo assim, o problema continua, já que o volume de plástico produzido e descartado anualmente continua crescendo, testando os limites do planeta. Até quando?


Deixe um comentário

Conectar com

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.