Dicionário Filosófico – Voltaire
A Inquisição é, como se sabe, uma invenção admirável e absolutamente cristã destinada a tornar o papa e os monges mais poderosos e a tornar todo um reino hipócrita.
De ordinário, São Domingos é visto como o primeiro a quem se deve esta instituição. Com efeito, conservamos ainda uma patente dada por este grande santo, concebida nas suas próprias palavras: “Eu, irmão Domingos, reconcilio com a Igreja o dito Rogério, portador dos presentes, sob condição de que se faça fustigar por um padre três domingos consecutivos desde a entrada da cidade até à porta da igreja, seja magro toda a sua vida, que durante três quaresmas do ano nunca beba vinho, traga o sanbenito com cruzes, reze o breviário todos os dias, diga dez Pater por dia e vinte à meia-noite: e de que guarde doravante a continência, se apresente todos os meses ao cura da sua paróquia, etc., tudo isto sob pena de ser tratado como herético, perjuro e impenitente.”
Embora Domingos seja o verdadeiro fundador da Inquisição, Luís de Paramo, um dos mais respeitáveis escritores e das mais brilhantes luminárias do Santo Ofício, refere, todavia, no titulo segundo do segundo livro, que Deus foi o primeiro instituidor do Santo Ofício e exerceu o poder dos irmãos pregadores contra Adão. Antes de mais, Adão é citado para comparecer em Juízo: A dam, ubi es? ( Adão. onde estás? (N. do E.)) e, com efeito, acrescenta, a falta de citação acarretaria a nulidade do processo divino.
Os trajes de pele que Deus fez a Adão e Eva foram o modelo do sanbenito que o Santo Ofício obriga os hereges a envergarem. Verdade seja que por este argumento se prova que Deus foi o primeiro alfaiate; mas não é menos evidente que o primeiro inquisitor.
Adão foi privado de todos os bens imóveis que possuía no grande paraíso terrestre; donde, que o Santo Ofício confisque os bens de todos aqueles que condena.
Luís de Paramo assinala que os habitantes de Sodoma foram queimados como heréticos porque a sodomia é heresia formal. Daí, passa à história dos judeus onde encontra o Santo Ofício em toda a parte.
Jesus Cristo é o primeiro inquisidor da nova lei: os papas foram inquisidores de direito divino e, finalmente, transmitiram o poder a São Domingos. Procede, em seguida, à enumeração de todos aqueles que a Inquisição levou à morte; e encontra Procede, em seguida, à enumeração de todos aqueles que a Inquisição levou à morte; e encontra muito para cima de cem mil.
O seu livro foi impresso no ano de 1598, em Madrid, com a aprovação dos doutores, os elogios do bispo e o privilégio do rei. Não concebemos hoje horrores ao mesmo tempo tão extravagantes e tão abomináveis; mas então nada parecia mais natural e mais edificante. Todos os homens se parecem com Luís de Paramo quando são fanáticos.
Este Paramo era um homem simples, muito exato nas datas, sem omitir nenhum fato interessante e avaliando com escrúpulo o número de vítimas humanas imoladas pelo Santo Oficio em todos os países.
Descreve com a maior ingenuidade o estabelecimento da Inquisição em Portugal e está perfeitamente de acordo com quatro outros historiadores que falaram como ele. Eis o que nos relatam unanimemente.
Havia muito que o papa Bonifácio IX, no começo do século XV, enviara como delegados irmãos pregadores que iam em Portugal, de cidade em cidade, queimando os heréticos, os muçulmanos e os judeus; eram, todavia, ambulantes e os próprios monarcas se queixaram algumas vezes dos seus vexames. O papa Clemente VII quis dar-lhes um estabelecimento fixo em Portugal, como tinham em Aragão e Castela. Houve dificuldades entre a corte de Roma e a de Lisboa; azedaram-se os ânimos; com isso, sofria a Inquisição e não se estabelecia perfeitamente.
Em 1539 apareceu em Lisboa um legado do papa que viera, dizia ele, para estabelecer a Santa Inquisição sob fundamentos inabaláveis. Traz ao rei João III cartas do papa Paulo III. Tinha outras cartas de Roma para os principais funcionários da Corte: as suas patentes de legado estavam devidamente seladas e assinadas: exibiu os poderes mais amplos para criar um grande inquisidor e todos os juízes do Santo Ofício. Tratava-se de um malandrim chamado Saavedra que sabia imitar todas as escritas, fabricar e apor falsos selos e falsos sinetes. Aprendera este mister em Roma e aperfeiçoara-se em Sevilha, donde chegara com dois outros intrujões. O seu séquito era magnífico; compunha-se de mais de cento e vinte lacaios. Para ocorrer a esta enorme despesa, ele e os seus confidentes contraíram em Sevilha empréstimos de somas imensas em nome da câmara apostólica de Roma; tudo estava concertado com a mais espantosa das ardilezas.
O rei de Portugal começou por se admirar que o papa lhe enviasse um legado a latere (Representante plenipotenciário do papa. (N. do E.)) sem o prevenir. O legado retorquiu altivamente que, em assunto tão premente como o estabelecimento fixo da Inquisição, Sua Santidade não podia sofrer atrasos e que ao rei era concedida honra suficiente pelo fato de o primeiro correio que lhe trazia a notícia ser um delegado do Santo Padre. O rei não ousou replicar. Nesse mesmo dia, o legado estabeleceu um grande inquisidor, mandou cobrar dízimos por toda a parte; e, antes que a Corte pudesse receber respostas de Roma, já fizera queimar duzentas pessoas e arrecadara mais de duzentos mil escudos.
Entretanto, o marquês de Villanova, grande senhor espanhol de quem em Sevilha o legado sacara empréstimos com bilhetes falsos, julgou oportuno pagar-se por suas mãos, em vez de se ir comprometer com o intrujão em Lisboa. O legado fazia então uma excursão junto da fronteira da Espanha. O marquês marcha para aí com cinquenta homens armados, rapta-o e leva-o para Madrid.
A intrujice foi em breve descoberta em Lisboa e o conselho de Madrid condenou o legado Saavedra ao chicote e a dez anos de galés; mas o admirável é que o papa Paulo IV confirmou depois tudo o que fora estabelecido pelo intrujão. Ratifica com a plenitude do seu poder divino todas as pequenas irregularidades processuais e toma sagrado o que fora puramente humano.
Que importa o braço de que Deus se digna servir-se?
Eis como a Inquisição se tomou sedentária em Lisboa e todo o reino admirou a Providência. (Cf. com estabelecimento da Inquisição em Portugal. (N. dos T.))
De resto, conhecem-se bem todas as regras processuais deste tribunal e sabe-se como são opostas à falsa equidade e à cega razão de todos os outros tribunais do universo. É-se aprisionado por simples denúncia das pessoas mais infames; um filho pode denunciar o pai, uma mulher, o marido: nunca se é acareado com os acusadores; os bens são confiscados em proveito dos juízes; é assim pelo menos que a Inquisição se tem conduzido até aos nossos dias: há aí algo de divino; pois, com efeito, é incompreensível que os homens tenham suportado pacientemente este jugo…
Enfim, o conde de Aranda foi abençoado pela Europa inteira ao aparar as garras e ao limar os dentes do monstro; mas este ainda respira.
* Texto da coleção “Os Pensadores”, Vol. XXIII – Voltaire – Dicionário Filosófico, pg. 228.