Há uma Moral?

O Filósofo Ignorante – Voltaire

Ilustração sekolahan.co.id

Quanto mais vi homens diferentes pelo clima, pelos costumes, pela linguagem, pelas leis, pelo culto e pela medida de sua inteligência, tanto mais observei que todos possuem o mesmo fundo moral: todos têm uma noção grosseira do justo e do injusto, sem saber uma palavra de teologia; todos adquiriram essa noção na idade em que a razão se desdobra, como todos adquiriram naturalmente a arte de levantar fardos com bastões e de atravessar riachos sobre um pedaço de madeira, sem ter aprendido matemática.

Pareceu-me, pois, que essa ideia do justo e do injusto era-lhes necessária, visto que todos concordavam nesse ponto, desde que pudessem agir e raciocinar. A inteligência suprema que os formou quis, portanto, que houvesse justiça sobre a terra para que nela pudéssemos viver durante certo tempo. Parece-me que não possuindo, como possuem os animais, nem instintos para nos alimentarmos, nem as armas naturais, e vegetando vários anos na imbecilidade de uma infância exposta a todos os perigos, os poucos homens que houvessem escapado das garras das bestas ferozes, da fome e da miséria ocupar-se-iam em lutar por causa de alguma comida ou de algumas peles de animais, e logo seriam destruídos, como as crianças do dragão de Cadmo, assim que tivessem podido servir-se de alguma arma. Pelo menos não teria havido sociedade alguma se os homens não tivessem concebido certa ideia da justiça, vínculo de toda sociedade.

Como o egípcio, que erguia pirâmides e obeliscos, e o cita errante, que sequer conhecia cabanas, teriam as mesmas noções fundamentais do justo e do injusto, se Deus não houvesse dado desde sempre a um e a outro essa razão que, desenvolvendo-se, fê-los perceber os mesmos princípios necessários, assim como lhes deu órgãos que, alcançando certo grau de energia, perpetuam necessária e igualmente a raça do cita e a do egípcio? Vejo uma horda bárbara, ignorante, supersticiosa, um povo sanguinário e avarento que não possuía em seu jargão sequer um termo para designar a geometria e a astronomia; no entanto, esse povo tem as mesmas leis fundamentais que o sábio caldeu que conheceu a rota dos astros, e que o fenício, ainda mais sábio, que se serviu do conhecimento dos astros para fundar colônias nos limites do hemisfério, onde o oceano se confunde com o Mediterrâneo. Todos esses povos asseguram que é preciso respeitar seu pai e sua mãe, que o perjúrio, a calúnia e o homicídio são abomináveis. Todos retiram, portanto, as mesmas consequências do mesmo princípio de sua razão desenvolvida.

Texto do Le Philosophe ignorant ou O Filósofo ignorante, Capítulo XXI – Voltaire

François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire (Paris, 21 de novembro de 1694 — Paris, 30 de maio de 1778) – Wikipedia


Deixe um comentário

Conectar com

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.