Orfeu, ou Filosofia.

Trecho do livro – A sabedoria dos Antigos – Cap. XI – Francis Bacon

Pintura de George Frederic Watts – Orpheus and Eurydice – 1872


A história de Orfeu, que embora muito conhecida não tem sido em todos os pontos interpretada corretamente, parece representar a Filosofia Universal. Pois Orfeu, homem admirável e verdadeiramente divino, que, senhor das harmonias, subjugava e arrastava após si todas as coisas graças às suas cadências doces e gentis, pode bem passar por uma personificação da filosofia. Assim como as obras do saber ultrapassam em dignidade e vigor as obras da força, os feitos de Orfeu superam os trabalhos de Hércules.

Orfeu, movido pelo afeto à esposa que a morte prematuramente lhe arrebatara, resolveu descer ao Hades e pedi-la de volta aos Manes, fiado no poder persuasivo de sua lira. Não se decepcionou. Os Manes, aplacados pela suavidade de seus cantos e modulações, consentiram que levasse a esposa consigo. Mas com uma condição: ela caminharia atrás dele e Orfeu não deveria contemplá-la até alcançarem os umbrais da luz. Porém, Orfeu, na impaciência e ansiedade do amor, não teve mão em si; antes que chegassem ao limiar de segurança, voltou-se. Fora rompido o pacto; ela imediatamente desapareceu de sua face e retornou às sombras. Desde então, Orfeu vagueou por sítios solitários, melancólico e avesso aos olhares das mulheres. Mas ali, pela mesma graciosidade de seu canto e execução, continuava a arrebatar as feras, e de tal modo que elas, esquecendo a própria natureza, acalmando a ferocidade e a disputa, não mais acicatadas de fúria e lascívia, adormecidas a fome e a gana de predar, rodeavam-no pacíficas e mansas como num teatro, atentas unicamente às harmonias de sua lira. E havia mais: tamanho era o poder da música de Orfeu que movia os bosques e rochedos, os quais vinham humilde e ordeiramente perfilar-se à sua volta.

Pintura Orphée devant Pluton et Proserpine, François Perrier, vers 1647-48 – Musée du Louvre.



Isso durou algum tempo, com próspero sucesso e conspícua admiração; mas eis que algumas mulheres trácias, açuladas por Baco, se apresentaram; sopraram suas trompas com tão formidável alarido que a música de Orfeu não mais se ouvia. Desfeitos, pois, os laços de ordem e sociabilidade que ali imperavam, a confusão se instalou novamente. As feras regrediram às suas naturezas várias e deram-se caça como antes. Rochedos e bosques debandaram. E o próprio Orfeu foi despedaçado pelas mulheres furiosas, que lhe espalharam os membros pelos campos. À notícia dessa morte o Helicão, rio sagrado das Musas, escondeu indignado suas águas sob a terra, para só reaparecer à distância.

Eis o provável sentido da fábula. O canto de Orfeu é de dois tipos: um deles propicia as potências infernais, o outro comove as feras e os bosques. Entende-se melhor o primeiro em referência à filosofia natural; o segundo, à filosofia moral e política. Com efeito, a filosofia natural se propõe nada menos, como a mais nobre das missões, que a restauração das coisas corruptíveis e (o que vem a ser o mesmo em grau inferior) a preservação dos corpos no estado atual, com retardamento da dissolução e corrupção. Ora, se tal se pode conseguir, só o será por um equilíbrio sutil das partes da natureza, como na harmonia e ajustamento perfeito das cordas da lira. No entanto, sendo essa a mais difícil das coisas, geralmente se lhe frustra o intento; e frustra-se (o que é muito verossímil) não mais que em razão dos arroubos de curiosidade prematura desencadeados pela impaciência e a solicitude. Então a Filosofia, não se sentindo à altura de tão formidável tarefa, volta-se tristemente para os negócios humanos. E, aplicando seus poderes de persuasão e eloquência para incutir no espírito dos homens o amor à paz, à virtude e à equidade, ensina os povos a unir-se, aceitar o jugo das leis e curvar-se à autoridade. Assim esquecem eles os apetites desenfreados, passando a acatar os preceitos e a disciplina. Segue-se logo a construção de edifícios, a fundação de cidades, o plantio de árvores em campos e jardins. Dir-se-ia então que as pedras e os troncos são chamados e vêm.

Pintura – Orphée aux enfers – Jacquesson de la Chevreuse – 1865 – Musée des Augustins, Toulouse.



Essa aplicação da Filosofia a assuntos civis é muito bem representada, segundo a ordem normal das coisas, como um evento posterior à tentativa insensata e ao fracasso final da experiência de devolver os corpos à vida. Pois o reconhecimento lúcido da inevitabilidade da morte leva os homens a buscar a vida eterna por mérito e nomeada.

Também se acresceu com finura à fábula a circunstância de Orfeu ser arredio às mulheres e ao matrimônio. É que as doçuras do casamento e os cuidados dos filhos geralmente afastam os homens dos grandes e excelsos feitos em prol do Estado: eles se contentam com a imortalidade da raça e dispensam a imortalidade das obras.

Se as realizações da sabedoria contam-se, porém, entre os trabalhos humanos mais excelentes, também elas padecem tempos adversos. Sucede que, após períodos de prosperidade, alguns reinos e repúblicas passam por revoluções, motins e guerras – em meio a cujo estrépito silenciam as leis, os homens regridem à condição depravada de sua natureza e a desolação se assenhoreia dos campos e cidades. A durarem as perturbações, não tarda que as letras e a filosofia sejam de tal modo dilacera das que delas só se podem achar fragmentos, dispersos aqui e ali como destroços de naufrágio. Sobrevêm tempos de barbárie e as águas do Helicão se abismam sob a terra até que, segundo a inexorabilidade das coisas, reapareçam em regiões outras que não mais a sua.

* Trecho do livro – A sabedoria dos Antigos – Cap. XI – Francis Bacon

Francis Bacon, 1°. Visconde de Alban, também referido como Bacon de Verulâmio (Londres, 22 de janeiro de 1561 — Londres, 9 de abril de 1626) 


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