Tortura

Dicionário Filosófico – Voltaire

Berço de Judas, usado em torturas medievais – Reprodução

Embora haja poucos artigos de jurisprudência entre as nossas honestas reflexões alfabéticas, impõe-se-nos todavia dizer algo sobre a tortura, também chamada interrogatório. Trata-se de uma estranha maneira de interrogar as pessoas. Não foram, porém, simples curiosos os que a inventaram; segundo todas as aparências, esta parte da nossa legislação deve a sua origem primeira a um ladrão de estrada. Na sua maior parte, estes senhores conservam o hábito de serrar os polegares, de queimar os pés e de interrogar mediante outros tormentos os que se recusam a revelar onde têm o dinheiro.

Os conquistadores, que sucederam a estes ladrões, acharam que a invenção era muito útil para  os  seus interesses, puseram-na  em  prática quando  suspeitaram  que haveria  alguns maus desígnios contra eles, como, por exemplo, o de ser-se livre, verdadeiro crime de lesa-majestade divina e humana. Era preciso conhecer os cúmplices; e, para esse efeito, fazia-se sofrer mil mortes a todos aqueles que eram objeto de suspeitas, pois, segundo a jurisprudência desses primeiros heróis, quem quer que fosse suspeito de ter tido algum pensamento pouco respeitoso contra eles era digno de morte. Desde que assim se merece a morte, pouco importa acrescentar tormentos pavorosos durante muitos dias e até semanas; esta prática tem mesmo um não-sei-quê de Divindade. A Providência submete-nos algumas vezes à tortura empregando a pedra, areias na urina, a gota, o escorbuto, a lepra, a varíola grande ou pequena, o despedaçamento das entranhas, as convulsões de nervos e outros executantes das vinganças da Providência.

Ora, posto que os primeiros déspotas foram, segundo confissão de todos os seus cortesãos, imagens da Divindade, trataram de a imitar tanto quanto puderam .

A Pera da Angústia era introduzida no orifício anal ou vaginal, e aberta, dilacerando a pessoa. Imagem Reprodução – Museum der Festung Salzburg, Austria.

É muito singular que nunca se tenha falado de tratos, de tortura, nos livros dos judeus. É de lastimar que uma nação tão amável, tão honesta, tão caridosa, não tenha conhecido esta maneira de saber a verdade. A razão disto, em minha opinião, é que não tinham necessidade do sistema. Com efeito, Deus dava sempre a conhecer a verdade ao seu povo querido. Umas vezes jogavam a verdade aos dados e o culpado suspeito sempre tirava o seis. Outras vezes, dirigiam-se ao grande sacerdote que consultava Deus sem mais delongas pelo urium e o thummim. Outras vezes ainda, encomendavam-se ao vidente, ao profeta, e podeis supor que o vidente e profeta descobria as coisas mais escondidas tão bem como o urium e o thummim do grande sacerdote.

O povo de Deus não estava reduzido, como nós, a ter de interrogar, a conjeturar; assim, a tortura não era usada por aquelas bandas. Foi a única coisa que faltou aos costumes do povo santo. Os romanos só infligiram a tortura aos escravos, mas estes não eram contados no número dos homens. Tudo leva a crer que um conselheiro de Tournelle também não veja como seu semelhante um homem que trazem ante si, macilento, pálido, desfeito, olhos amortecidos, barba crescida e suja, coberto pela vermina que o corroeu no calabouço. Dá-se, pois, ao prazer de lhe mandar aplicar a grande e a pequena tortura, na presença de um cirurgião que vigia o pulso do paciente, até este ficar em risco de morte, após o que se recomeça; e, como muito bem se diz na comédia Os Litigantes, “isto sempre faz passar uma hora ou duas”.

O grave magistrado que comprou por uma quantia qualquer o direito de fazer estas experiências sobre o próximo contarão à mulher à hora de jantar o que aconteceu de manhã. À primeira vez, a senhora revolta-se, à segunda jã lhe tomou o gosto, porque todas as mulheres são curiosas; e, em seguida, a primeira coisa que dirá ao marido quando este regressa a casa, de toga, é: “Queridinho, mandaste aplicar hoje a tortura a alguém?”

Os franceses que passam, não sei por que, por serem um povo muito humano, admiram-se que os ingleses, que tiveram a desumanidade de nos tomarem todo o Canadá, hajam renunciado ao prazer de aplicar a tortura.

A Roda – Instrumento de tortura medieval – Imagem Reprodução

Quando o cavaleiro de La Barre, neto de um tenente dos exércitos, jovem de muito espírito e grandes esperanças mas com toda a leviandade de uma juventude desenfreada, foi reconhecido culpado de ter cantado algumas canções ímpias e até de ter passado diante de uma procissão de capuchos sem tirar o chapéu, os juízes de Abbeville, pessoas comparáveis aos senadores romanos, ordenaram não só que lhe arrancassem a língua, que lhe cortassem a mão e que o queimassem lentamente. como o submeteram ainda à tortura para averiguarem precisamente quantas canções tinha cantado e quantas procissões tinha visto passar de chapéu na cabeça.

Este episódio aconteceu não nos séculos XIII ou XIV mas no século XVIII. As nações estrangeiras julgam a França pelos espetáculos, pelos romances, pelos lindos versos, pelas peque nas da ópera, cujos costumes  são tão doces, pelos nossos bailarinos, que têm tanta graça, pela Senhorita Clairon, que é um encanto a declamar versos. Ignoram que no fundo não há nação mais cruel que a francesa.

Os russos passaram por bárbaros em 1700; nós somos bárbaros em 1769 ; uma imperatriz acaba de conceder a esse vasto Estado leis que teriam feito honra a Minos, a Numa e a Sólon, se houvessem disposto de espírito bastante para as inventar. A mais notável consiste na tolerância universal e, logo a seguir, vem a abolição da tortura. A justiça e a humanidade guiaram a sua pena e ela tudo reformou. Ai da nação que, há tanto tempo civilizada, é ainda guiada por costumes antigos e atrozes ! “Por que razão haveríamos de mudar a nossa jurisprudência?“.perguntam nessa nação. “A Europa serve-se dos nossos cozinheiros, dos nossos alfaiates e dos nossos cabeleireiros; logo as nossas leis são boas.”

* Texto da coleção “Os Pensadores”, Vol. XXIII – Voltaire – Dicionário Filosófico, pg. 299

François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire (Paris, 21 de novembro de 1694 — Paris, 30 de maio de 1778) – Wikipedia


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