Gente em lata: O Escândalo da carne em 1906

Revelado em um livro, o total horror da indústria de carnes levou à criação da vigilância sanitária moderna.

Por Tok de História e AH.

Carne enlatada, mas que tipo de carne? Será que é só carne mesmo? – Shutterstock

O presunto estragou? Sem problemas! Elzbieta, uma imigrante lituana, faz o seu trabalho diário: coloca o presunto podre numa cortadeira, a duas mil rotações por minuto. Junta meia tonelada de presunto bom, e ninguém nem nota. A linguiça importada da Europa está branca e mofada? Bórax e glicerina e está novinha.

Funcionários precisam lavar as mãos antes de sair? Para isso está lá o tanque de água da salmoura para os embutidos. A carne caiu no chão, onde funcionários com tuberculose escarram o dia inteiro? Acidentes acontecem, mas por que desperdiçar?

Ratos surgem no depósito escuro de carne destinada a salsichas? Coloque pão com veneno. Os bichos podem morrer sobre a carne, mas é escuro demais para separar. Para dentro da máquina eles vão: carne, rato e pão com veneno. Que seja uma lição para os ladrõezinhos!

Receita de presunto em lata:

1) Pontas de carne defumada pequenas demais para serem cortadas com máquina;
2) Tripa, tratada com produtos químicos para não parecer branca e revelar sua origem;
3) Restos de presunto e carne em lata recolhidos do chão;
4) Pelanca de bife;
5) Temperos o suficiente para ter gosto de alguma coisa.

Alguém perdeu um dedo numa serra? Bem… quem se candidata a procurar?

Por fim, uma tragédia. E, nesta, vamos deixar o autor explicar: “às vezes, os funcionários caíam nos tachos; e, quando eram pescados dali, nunca havia o suficiente deles que pudesse ser exibido – por vezes, isso era ignorado por dias, até que tudo menos os ossos era lançado no mundo como Banha Pura Durham!”. Banha que, vale lembrar, não só era vendida diretamente, como adicionada a outros produtos já citados. Gente em lata. Linguiça de gente.

E você pergunta, onde estão os fiscais? No escritório do chefe, recebendo uma colaboração para o leite das crianças.

Um dia normal na indústria de carnes de Chicago.

Indústria de carnes em Chicago, 1906 / Crédito: Wikimedia Commons

Autor frustrado

Essas são passagens do livro A Selva, do então jovem de 28 anos Upton Sinclair. Em 1905, ele havia recebido uma encomenda do jornal socialista Appeal to Reason para fazer um Exposé, uma denúncia, da indústria de Chicago. Por meses, ele se disfarçou de trabalhador para ver de perto, entrando nas fábricas sem ser notado e conversando com os colegas. O resultado foi uma ficção sobre uma família de imigrantes lituanos e suas agruras na indústria – inclusive uma morte por intoxicação alimentar. Um dos livros mais chocantes da História.

Livro The Jungle – Foto Reprodução – Amazon.co.uk

Inicialmente publicado como folhetins no jornal, ao se tornar um livro, em 1906, contra a vontade do autor, foi um best seller instantâneo, vendendo 25 mil exemplares em seis semanas. E criando um escândalo nacional, repercutido por todos os jornais. O que exigiu uma resposta do presidente. Theodore Roosevelt achava Sinclair um socialista maluco, mas leu seu livro mesmo assim. Decidiu mandar o comissário do trabalho Charles P. Neil e o assistente social James Bronson investigarem as alegações do escritor.

As fábricas foram avisadas de antemão e fizeram uma faxina urgente. Ainda assim, os dois investigadores saíram revoltados. Disseram ao presidente que a única coisa que não viram foi gente caindo em tachos de gordura – isto é, talvez gente inteira não estivesse indo parar nas latas, mas os pedaços perdidos na serra estavam.

Roosevelt então se voltou contra a indústria e, em 30 de junho de 1906 – 4 meses e 4 dias após o lançamento do livro – entrava em vigor o Ato das Drogas e Alimentos Puros, que criou a FDA – Food and Drug Administration (Administração de Alimentos e Drogas). Em março de 1907, também entrava em vigor o Ato de Inspeção de Carnes. 

Era o começo de uma nova era na indústria de alimentos. Quem quisesse exportar para os EUA, tinha de lidar com a FDA. Assim, leis e sistemas de inspeção mais duros e científicos foram criados no mundo inteiro. Se eles podem ser burlados, como estamos vendo, é outra história – mas, quando são, a resposta internacional é fulminante. 

Quanto a Sinclair, ele detestou tudo. Em primeiro lugar, seu livro era para ser uma peça de propaganda socialista, pelos direitos dos trabalhadores – seus personagens se convertem ao socialismo no final. Os leitores, porém, não deram a mínima para o ser humano que caía no tacho, se revoltando apenas com o fato que havia ser humano no tacho. “Eu apontei para o coração do público e acidentalmente atingi o estômago”, lamentou o autor. 

O estilo de jornalismo investigativo de Sinclair virou moda. E ganhou um nome pejorativo pela grande imprensa: muckracking, algo como “catar esterco”. 



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