Um gay perante a Inquisição

Em “Crônicas de Um Gay Assumido”, Luiz Mott desvenda mitos e verdades sobre o mundo gay, as tribos sexuais, faz confidências e promove discussões sobre homofobia e homoerotismo com a grife, o humor, a ousadia e a sinceridade de um pioneiro do movimento gay no Brasil. 

• Por Luiz Mott – Professor Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e autor de “Crônicas de Um Gay Assumido”, Record, 2003.

Vinte e um de setembro de 1593. Tempo de moagem da cana em Pernambuco. Nesse dia, desembarca no Recife o Visitador do Santo Oficio, Heitor Furtado de Mendonça. A capitania contava com cerca de 8 mil brancos, 2 mil índios domésticos e 10 mil escravos africanos. Olinda, a sede da capitania, ostentava a casa da alfândega, três conventos, quatro igrejas e uma dezena de ruas. Durante os 22 meses que aí permaneceu, o visitador da Inquisição ouviu 209 denunciantes e 61 confissões de moradores dessa região, cujos desvios incluíram 90 blasfêmias, 87 proposições heréticas, 62 práticas judaicas, 36 desacatos à religião, 34 bigamias, 17 sodomias, 16 práticas luteranas e oito feitiçarias. Um total de 350 ocorrências.

Pelo menos cinco homens foram publicamente infamados de “sodomia”, (homossexualidade), e mais de 30 mantinham em segredo que eram “fanchonos”, isto é, gays. Entre esses, André Lessa, um sapateiro que vivia em pleno centro de Olinda e se viu obrigado a assumir sua prática perante o inquisidor. Em seu currículo constavam 31 rapazes com quem praticara mais de uma centena de ajuntamentos sodomíticos. Isso sem falar nos parceiros que ele omitiu por esqueci-mento ou por matreirice.

O “Lessa”, como era chamado, invalida o mito do homossexual como um ser delicado, franzino, uma espécie de “terceiro sexo”, conforme definiu no século 19 o médico Karl Ulrichs, o pai dos estudos sobre a homossexualidade. Em seu processo, arquivado na Torre do Tombo, (Inquisição de Lisboa nº 8.473), André Lessa foi descrito como “homem alto, um homenzarrão, com um grande bigode e valente”. Deve ter frequentado quando menos as primeiras letras, pois assina sua confissão com bela firma.



Em seu processo, consta que lá iam de 12 para 13 anos que “tem pecado na sensualidade torpe com muitos moços, sendo sempre autor e provocador, tendo ajuntamento por diante com os membros viris e com as mãos, solicitando e efetuando polução um ao outro.” Os homens e rapazes com quem o sapateiro Lessa manteve atos homoeróticos tinham idade variando entre 15 e 18 anos, eram todos brancos, com exceção de um mameluco. Entre eles, dois filhos de mercadores e de um fazendeiro, três alfaiates, dois sapateiros e nove criados. Quanto à performance erótica desses cripto-sodomitas, temos um menu variado, o que desfaz o mito de que os atos homoeróticos repetiriam a mesma limitação comum aos amantes de sexo oposto, em que há um macho penetrador que subjuga a fêmea submissa.

As centenas de práticas libidinosas desse homenzarrão bigodudo revelam a grande versatilidade do imaginário homoerótico quinhentista, incluindo “ajuntamentos nefandos alternados”, “acometimentos nefandos por detrás”, “ajuntamento dos membros viris pela frente”, “cognatos e adereços”, “derramamento de semente entre as pernas”, “coxeias”, exibições fálicas e conversações torpes. Todas expressões obtidas pelos piedosos ouvidos inquisitoriais.

Um dos aspectos que mais chama a atenção no processo de André Lessa é que em lugares remotos, como Olinda e Recife, no século 16, num espaço urbano exíguo e com rígido controle social, exacerbado ainda mais pelo espectro ameaçador do representante do Santo Tribunal, havia lugar para no curto período de um ano, um homossexual manter uma média de um encontro erótico a cada dez dias, contatando 14 amantes em 12 meses. Além disso, Lessa foi castigado com relativa brandura: sofreu quatro sessões de açoites e foi degredado por cinco anos para Angola. Se Lessa não tivesse confessado, jamais teríamos notícia da existência dessa numerosa rede de cripto-sodomitas que somente graças à Inquisição se tornou conhecida para a posteridade.

Quantos e quantos outros “Lessas” e sua numerosa trupe de amantes homossexuais nunca foram revelados? Os processos dos sodomitas perseguidos pela Inquisição permitem-nos portanto afirmar que, assim como em Portugal do século 16, havia uma subcultura gay também no Brasil naquela época, o que nos lembra Goethe quando declarou: “a homossexualidade é tão antiga quanto a própria humanidade.” ■

O antropólogo Luiz Mott


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