Bolsonaro X Igreja Católica: Bispos brasileiros vão a Roma para debater crise na Amazônia com Papa

Sínodo da Amazônia terá participação de 102 bispos de nove países, sendo 57 brasileiros, para discutir o descaso do governo Bolsonaro em relação ao meio ambiente . Documentos do Vaticano mostram Igreja disposta a bater de frente com diretrizes do governo Bolsonaro.

Fontes: UOL; Revista Fórum.

A repercussão internacional das queimadas na Amazônia e a forma pela qual o governo de Jair Bolsonaro trata o assunto chamaram a atenção do papa Francisco. 

No último domingo (25), o papa Francisco falou sobre os incêndios na Amazônia, antes de rezar o Angelus com os fiéis na Praça de São Pedro, no Vaticano. “Estamos todos preocupados com os grandes incêndios que se desenvolveram na Amazônia. Oremos para que, com o empenho de todos, sejam controlados o quanto antes. Aquele pulmão de florestas é vital para o nosso planeta”.

O discurso do papa tocou em um assunto que é motivo de preocupações a 8.901 quilômetros dali, no Palácio do Planalto, em Brasília. A repercussão internacional das queimadas ao longo da semana passada reavivou no governo de Jair Bolsonaro (PSL) a preocupação com possíveis críticas ao governo brasileiro no Sínodo da Amazônia.

Trata-se de uma reunião de bispos dos países da região amazônica com o papa Francisco para discutir a atuação da Igreja Católica na área. O encontro acontece de 6 a 27 de outubro, em Roma. Participarão do encontro 102 bispos de nove países, sendo 57 brasileiros. Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela e Guiana Francesa (departamento ultramarino da França) também enviarão representantes.

Na Amazônia, reinam “a violência, o caos e a corrupção”. A constatação faz parte dos documentos de trabalho preparados por bispos e dioceses como base das discussões para o Sínodo da Amazônia. Nos últimos meses, o governo de Jair Bolsonaro demonstrou profunda irritação em relação ao evento, transformando a reunião entre religiosos em seu mais novo palco de um confronto diplomático internacional.

O conteúdo das propostas, de fato, pode significar uma pressão maior ao governo e uma maior capacidade de mobilização das populações que, hoje, são vítimas de abusos de direitos humanos e esquecidas pelo Estado.

Imagem captada por satélite da Nasa mostra grande concentração de fumaça nas regiões Centro-Oeste e Norte do país / Divulgação | Nasa

Nos documentos oficiais que circulam entre os religiosos para alimentar o debate, fica claro que a Santa Sé coloca em xeque a atual realidade da exploração econômica da floresta, apresentando-a como uma ameaça para o planeta. Mas é, acima de tudo, o novo papel que a Igreja quer ter na região que causa apreensão nos círculos do poder.

Os documentos de trabalho do sínodo não representam o resultado final da reunião. O texto é, acima de tudo, formado por consultas e sugestões enviadas por dioceses espalhadas pela Amazônia. Após os debates em Roma, o papa Francisco poderá responder aos temas propostos com uma carta apostólica, determinando, então, uma linha de atuação da Igreja.

Bispos que conversaram com a reportagem do UOL sob condição de anonimato dizem que a agenda proposta não deve ser vista como uma afronta à soberania do governo na região e lamentam a forma pela qual a administração Bolsonaro optou por tratar o sínodo como um “ato de resistência” e como se fosse uma “conferência da oposição”.

Os bispos também recusam a acusação de que sejam “de esquerda”, forma pela qual membros do governos os têm classificado.

Nas últimas semanas, diversas foram as reuniões entre membros do Itamaraty a e a diplomacia do Vaticano para tratar do assunto. A chancelaria chegou a deixar claro que via com desconforto alguns dos temas da agenda, assim como a forma pela qual foram apresentados.

Durante os meses de consultas por toda a Amazônia para preparar os documentos de trabalho e a agenda do sínodo, a Santa Sé concluiu que “as comunidades consultadas esperam que a Igreja se comprometa no cuidado da Casa Comum e de seus habitantes, que defenda os territórios e que ajude os povos indígenas a denunciar o que provoca morte e ameaça os territórios”.

A partir das consultas, portanto, uma lista de sugestões foi elaborada para que, em Roma, os religiosos as considerem. Entre as propostas está a de que padres e bispos espalhados pela região abracem as causas sociais, de reforma agrária e ambientais, se distanciando do poder político.

Recomenda-se que a Igreja “assuma sem medo a aplicação da opção preferencial pelos pobres na luta dos povos indígenas, das comunidades tradicionais, dos migrantes e dos jovens, para configurar a fisionomia da Igreja amazônica”.

E a orientação vai além: “rejeitar a aliança com a cultura dominante e o poder político e econômico, para promover as culturas e os direitos dos indígenas, dos pobres e do território”.

O Vaticano não fala de questionar a soberania dos governos e nem insinua a necessidade de dar um “status internacional” para a floresta, um ponto sensível para o Brasil. Mas a Igreja insiste que o atual modelo de exploração não pode ser aceito, nem em termos ambientais e nem no que se refere aos direitos humanos.

Papa Francisco em encontro com líder indígena Raoni em defesa da Amazônia Foto: VaticanMedia

Em um documento denominado de Instrumentum Laboris, por exemplo, o Vaticano deixa claro: “a vida na Amazônia está ameaçada pela destruição e exploração ambiental, pela violação sistemática dos direitos humanos elementares da população amazônica”. “A ameaça à vida deriva de interesses econômicos e políticos dos setores dominantes”, diz o texto, que aponta ainda para o papel das empresas extrativistas.

Nas consultas realizadas pelo Vaticano em todos os países da região Amazônica, um elemento que surgiu com força foi a conivência do poder com aqueles que ameaçam a floresta. Uma lista dos principais problemas foi elaborada e eles incluem a criminalização e assassinatos de líderes e defensores do território, além de concessões a madeireiras, monocultura e mesmo narcotráfico. De acordo com o documento, os “clamores amazônicos refletem três grandes causas de dor”.

  • A falta de reconhecimento, demarcação e titulação dos territórios dos indígenas, que fazem parte integral de suas vidas;
  • A invasão dos grandes projetos chamados de “desenvolvimento”, mas que na realidade destroem territórios e povos (por ex.: hidroelétricas, mineração – legal e ilegal – associada aos garimpeiros ilegais [mineiros informais que extraem ouro], hidrovias – que ameaçam os principais afluentes do Rio Amazonas – exploração de hidrocarbonetos, atividades pecuárias, desmatamento, monocultura, agroindústria e grilagem [apropriação de terras valendo-se de documentação falsa] de terra).
  • A contaminação de seus rios, de seu ar, de seus solos, de suas florestas e a deterioração de sua qualidade de vida, culturas e espiritualidades.

Dentro do governo brasileiro, a referência ao direito à demarcação de território e uma citação à autodeterminação são consideradas como “problemáticas”. Há poucas semanas, por exemplo, o próprio presidente indicou que, se dependesse dele, não haveria mais terra demarcada no país.

O Vaticano também denuncia a “penalização dos protestos contra a destruição do território e de suas comunidades, já que determinadas leis da região as qualificam como “ilegais”.

“Outro abuso é a recusa generalizada por parte dos Estados de respeitar o direito de consulta e consentimento prévios aos grupos indígenas e locais, antes de definir concessões e contratos de exploração territorial, não obstante .


Rumo a um ponto sem retorno

Na avaliação da Santa Sé, o aumento de intervenção humana, incluindo incêndios, e mudanças climáticas “estão levando a Amazônia rumo a um ponto de não retorno”.

“O abate maciço de árvores, o extermínio da floresta tropical causado por incêndios florestais intencionais, a expansão da fronteira agrícola e as monoculturas são causas dos atuais desequilíbrios regionais do clima, com efeitos evidentes sobre o clima global, a nível planetário, tais como as grandes secas e as inundações cada vez mais frequentes”, alerta a Igreja.

O sínodo, ainda que seja um momento para que a Igreja defina seu papel na região, não hesitará em fazer denúncias graves.

Num documento da diocese de San José del Guaviare e da Arquidiocese de Villavicencio e Granada (Colômbia), fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, os indígenas locais apelam: “a terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram as veias de nossa Mãe Terra”, disseram.

Num outro trecho, uma diocese colhe a seguinte descrição da situação: “somos uma região de territórios roubados”.

Para a Igreja, portanto, a Amazônia “constitui uma formosura ferida e deformada, um lugar de dor e violência, como o indicam de maneira eloquente os relatórios das Igrejas locais”.

A realidade da Amazônia é ainda descrita como uma que vive “à margem da lei e do direito em muitas de suas regiões”.

“O grito de dor da Amazônia é um eco do clamor do povo escravizado no Egito”, comparam os religiosos, numa referência a uma passagem bíblica.

“Será necessário indignar- se”

Para o Vaticano, o caminho deve ser o de diálogo e comunicação. “As principais questões da humanidade que sobressaem na Amazônia não encontrarão soluções através da violência nem da imposição, mas sim mediante o diálogo e a comunicação”.

Mas a Igreja já alerta que existirão grupos poderosos que resistirão a essa estratégia. A resposta? Indignar-se.

A recomendação do documento é explícita: afastar-se do poder para estar ao lado daqueles que sofrem.

“Ser Igreja na Amazônia de maneira realista significa levantar profeticamente o problema do poder, porque nesta região o povo não tem possibilidade de fazer valer seus direitos face às grandes corporações econômicas e instituições políticas”, indica o documento.

“Atualmente, questionar o poder na defesa do território e dos direitos humanos significa arriscar a vida, abrindo um caminho de cruz e martírio. O número de mártires na Amazônia é alarmante (por ex., somente no Brasil, de 2003 a 2017, foram assassinados 1.119 indígenas por terem defendido seus territórios)”.

O Vaticano defende “aliar-se aos movimentos sociais de base, para anunciar profeticamente uma agenda de justiça rural que promova uma profunda reforma agrária, incentivando a agricultura orgânica e agroflorestal”.

“A Igreja não pode permanecer indiferente mas, pelo contrário, deve contribuir para a proteção dos defensores de direitos humanos, e fazer memória de seus mártires, entre elas mulheres líderes como a Irmã Dorothy Stang.”.



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