50 anos de Stonewall: Como a revolta de 1969, deu origem ao dia do orgulho LGBT

Revolta ocorrida em Nova York em protesto contra a violência policial contra gays fundou um novo tipo de movimento LGBT.

Fontes: G1; Hypeness; Catraca Livre.

Apontar o real início dessa luta é praticamente impossível, a homossexualidade é tão antiga quanto a própria humanidade, e sua história é a história da sexualidade humana em sua absoluta e incontornável diversidade, e provavelmente assim também é a história do preconceito. Mas olhar para o horizonte da história, mesmo que somente até o tempo recente onde nosso olhar alcança, é o melhor meio para se dimensionar a necessidade, a contundência e o profundo significado de lutas que ainda se fazem necessárias e urgentes hoje.

O bar Stonewall Inn

Se a história moderna das paradas gays e da própria luta pelos direitos LGBTs possui um início formal, esse início aconteceu na madrugada do dia 28 de junho de 1969, em um bar no bairro do Greenwich Village, em Nova York, chamado Stonewall Inn. O que ficou conhecido como as Rebeliões ou Revoltas de Stonewall é visto como o acontecimento mais importante para a liberação do movimento gay e a luta pelos direitos LGBT nos EUA e no mundo.

O Stonewall Inn no final dos anos 60

Qualquer prática homossexual era considerada crime em todos os estados americanos até 1962 – e a punição variava entre longa pena em regime fechado, trabalhos forçados ou mesmo a pena de morte. Logo, o que aconteceu em Stonewall se deu em um país que havia “legalizado” o amor entre pessoas do mesmo sexo somente sete anos antes.

Se o sistema judiciário americano praticava a homofobia abertamente até poucos anos antes de 1969, naturalmente que, à época, eram raros os bares ou estabelecimentos que recebiam pessoas abertamente gays nos EUA – e os que o faziam eram frequentemente achacados ou mesmo fechados pela polícia. Localizado entre os números 51 e 53 da Rua Christopher, no Village, o Stonewall Inn se tornara o único bar gay de Nova York. Para manter tal negócio, a Família Genovese – mafiosos proprietários do local – pagavam semanalmente uma alta propina à polícia nova-iorquina. O bar não tinha licença para comercializar bebidas alcoólicas, não tinha saídas de emergência, não correspondia às exigências sanitárias legais, mas era o único bar abertamente gay em toda cidade, e que tinha como seu principal atrativo a dança – nele aos homens era permitido dançar.

Ainda assim, as batidas policiais no Stonewall Inn eram constantes, frequentemente prendendo funcionários, clientes sem identificação ou simplesmente homens trans ou vestidos como mulheres (a lei nova-iorquina previa prisão para homens travestidos). Quando, às 1h20 da manhã do dia 28 de junho de 1969, quatro policiais decidiram invadir o local, o que se esperava era que a batida fosse mais uma operação policial padrão. O que se deu, no entanto, não podia ser mais diferente – e mais radical, transformador, violento e simbólico da necessidade de mudanças pela qual não só os EUA como todo o mundo precisava passar.

Jovens em frente ao Stonewall Inn à época das rebeliões

Revolta de Stonewall

Havia pouco mais de 200 pessoas presentes no bar quando as luzes foram acesas e a música desligada, como indicativo de que a polícia estava presente. As saídas foram fechadas, e o procedimento padrão de alinhar os clientes, conferir seus documentos e separar os “vestidos de mulher” para que policiais femininas pudessem conferir seus sexos não aconteceu conforme o previsto, diante da recusa por parte dos clientes de se identificarem. A decisão inicial foi de levar a maioria dos presentes para a delegacia. O desconforto foi se transformando em revolta conforme uma pequena multidão de clientes e curiosos começou a se aglomerar ao redor do bar.

Antes que chegasse o primeiro camburão a multidão havia aumentado em dez vezes e, com isso, elevou-se também a tensão. Rapidamente após o primeiro grito de “Poder gay!” e o entoar dos primeiros versos da clássica canção de protesto “We Shall Overcome” (Nós vamos vencer, em tradução livre), uma briga entre uma mulher e um policial estourou. A mulher, que estava sendo tratada com violência pelos oficiais, convocou a multidão a fazer algo para ajuda-la – e foi assim que a pólvora da injustiça acendeu a explosão.

Segundo relatos dos presentes, a multidão foi tomada por sentimento coletivo de que não deviam mais aguentar tal abuso. Moedas e garrafas começaram a ser atiradas contra as viaturas, como gestos que exigiam a liberdade, em uma revolta popular instantânea e espontânea. Pessoas ainda estavam detidas dentro do Stonewall quando pedras, tijolos e lixo em chamas começaram a ser atirados contra as janelas e a porta do bar.

Primeira noite das rebeliões – Foto Wikipedia

Os policiais fizeram uma espécie de barricada para se defender dos manifestantes e acabaram sendo encurralados para dentro do bar.

Alguém atirou um pedaço de jornal com fogo para dentro do Stonewall Inn e teve início um princípio de incêndio. Os policiais, que usavam uma mangueira para conter as chamas, decidiram também usar aquela água contra a multidão.

A multidão invadiu o local, a polícia ameaçou atirar, mas rapidamente o incêndio começou. Tudo durou cerca de 45 minutos, até que novas viaturas chegaram junto com o corpo de bombeiros para conter a confusão.

Enquanto pessoas eram presas, a multidão resistia – e zombava dos policiais com danças e cantos. Era a primeira vez que um imenso grupo homossexual se amotinava e, mesmo com as prisões, conseguia humilhar a indevida ação policial. Às 4 da manhã as ruas estavam vazias, o bar estava destruído – mas a eletricidade permanecia no ar.

Pela manhã, quando o último policial deixou o Stonewall Inn, a gerência do bar colocou um aviso de que o local voltaria a funcionar normalmente, e assim o fez. 

Uma multidão ainda maior se reuniu na noite seguinte, com uma diferença de postura gritante: já que haviam perdido o local secreto e escondido em que podiam demonstrar seus afetos, agora o fariam em público. Mesmo em ruínas, entre casais gays aos beijos pelas ruas de Manhattan, o Stonewall abriu suas portas na noite seguinte, mas o que havia era uma imensa multidão, que se espalhou por diversos quarteirões ao redor. A policia chegou em massa, a confusão se instaurou e a luta nas ruas novamente atravessou a madrugada.

Uma das mais celebres testemunhas dessa segunda noite foi o grande poeta norte-americano Allen Ginsberg. Abertamente homossexual e uma das mais ativas vozes pela causa, o maior nome da geração beat visitou então o Stonewall pela primeira vez, e o que viu o comoveu.

“Você sabe, os caras lá estavam tão lindos. Eles perderam esse olhar de medo que todas as bichas tinham há 10 anos”, disse Ginsberg.

Por cerca de cinco dias, novos focos de revolta aconteceram na região, até que o caos foi finalmente contido – mas não havia mais ponto a se voltar: era a primeira vez que gays, lésbicas e trans se uniam e resistiam com toda força contra as leis e a violência homofóbica do estado americano. No contexto da luta negra pelos direitos civis e do levante feminista do fim dos anos 1960, o movimento gay se tornava enfim uma força incontornável.

Em poucos meses, praticamente todas as cidades americanas passaram a ter fortes organizações pelos direitos homossexuais e, no aniversário de um ano da Revolta de Stonewall, no exato dia 28 de junho de 1970, as primeiras marchas do orgulho gay aconteceram nos EUA.


Stonewall repercutiu no Brasil?

Quando a revolta de Stonewall aconteceu, o Brasil passava por um dos piores momentos da ditadura militar. Menos de um ano antes, em dezembro de 1968, havia sido outorgado o Ato Institucional nº 5, que retirava uma série de liberdades civis, de direitos individuais e que fez aumentar a censura.

Naquele momento, Stonewall não fazia sentindo nenhum para o Brasil, segundo Quinalha. “A ditadura acabou atrasando em dez anos a emergência do movimento LGBT no Brasil”, fala. “Era um período de emergência de movimentos LGBT em países latinos e o Brasil também poderia (fazer parte), porque tinha condições pra que emergissem esses grupos, mas isso acaba não acontecendo por conta da repressão da ditadura.”,

Stonewall ganha o mundo

Em poucos anos, as marchas ganhariam todo o mundo, tornando-se uma das maiores e mais importantes movimentações políticas de todo o mundo.

No primeiro ano da revolta de Stonewall, houve uma marcha LGBT em Nova York, Los Angeles, San Francisco e Chicago, para relembrar a data. Em Nova York, os manifestantes caminharam 51 quarteirões, do East Village até o Central Park. No ano seguinte, a marcha para relembrar Stonewall chegaria à Europa, acontecendo também em Londres, Paris, na parte ocidental de Berlim e em Estocolmo.

Em 2015, a Prefeitura de Nova York tornou o bar monumento histórico da cidade. E, um ano depois, o ex-presidente Barack Obama decretou que o bar seria o primeiro monumento nacional aos direitos dos LGBTQ.

Os frequentadores do famoso bar Stonewall Inn se surpreenderam na virada deste ano quando uma mãe e seu filho adolescente subiram ao palco do local após a meia-noite para apresentar um número musical.

Antes de entoar os versos de Material Girl com David Banda, seu filho de 13 anos ao violão, Madonna fez um discurso explicando por que estava ali naquela noite de Réveillon.

“Estou aqui orgulhosamente no lugar onde o Orgulho começou, o lendário Stonewall Inn, no nascimento de um novo ano. Unimo-nos esta noite para celebrar os 50 anos da revolução!”, falou, gravada por muitos celulares. “Nunca vamos nos esquecer dos motins de Stonewall e daqueles que se levantaram e disseram ‘Basta!'”

E prosseguiu: “Nossos irmãos e irmãs antes de nós não eram livres para celebrar como estamos fazendo hoje à noite, e nunca devemos esquecer isso. Stonewall foi um momento decisivo na história, catapultando os direitos LGBT em conversas públicas e despertando o ativismo gay”


Curiosamente o Brasil, país onde mais ocorrem crimes de ódio contra LGBTs no mundo, foi a primeira nação das Américas a descriminalizar a homossexualidade e uma das primeiras em todo o mundo: ainda durante os tempos do Império, em 1830, ser homossexual deixou de ser crime por aqui.

A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo começou somente em 1997, mas rapidamente se tornou uma das maiores do mundo, sendo hoje o evento que mais reúne turistas na capital paulista (e o segundo do Brasil, perdendo somente para o carnaval carioca).

É por causa da revolta de Stonewall que o orgulho LGBT (Lésbicas, Gay, Bissexual, Transexual, Travesti) é celebrado em junho – o Dia do Orgulho é na mesma data em que aconteceu o levante em Nova York, no 28. Entre junho e julho, as principais cidades do mundo apresentam suas paradas gay, com multidões nas ruas levantando a bandeira do arco-íris (símbolo do orgulho LGBT).

Neste ano, as principais paradas gay do mundo, como a de São Paulo, que acontece no dia 23 de junho, decidiram homenagear os 50 anos do acontecimento dessa revolta.

“Stonewall funda um novo tipo de movimento LGBT. Vai criar essa ideia do orgulho, das pessoas LGBT ocupando o espaço público, assumindo suas identidades e se orgulhando dessas identidades e de praticas de sexualidade e de gênero”, afirma à BBC News Brasil Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), ativista de direitos humanos e um dos autores do livro A História do Movimento LGBT no Brasil.

De acordo com a SPTuris, é o segundo evento que mais atrai turistas à cidade de São Paulo, ficando atrás da Virada Cultural. Em 2018, a produção do evento informou que cerca de 3 milhões de pessoas estiveram presentes no evento, que teve trios elétricos com artistas como Anitta e Pabllo Vittar.

Confira aqui o evento oficial da 23ª Parada do Orgulho LGBT de SP no Facebook.

Ainda que o ativismo gay naturalmente não tenha começado naquela noite, o fato é que tudo mudou depois de Stonewall. Tal qual o gesto de Rosa Parks, em 1955, de se negar a ceder seu lugar em um ônibus e ir para os fundos do veículo onde ficava o espaço segregado para os negros desencadeou o início do movimento pelos direitos civis nos EUA, a Rebelião de Stonewall fez o mesmo pelo movimento gay e pelos direitos LGBTs no mundo. Como bem definiram os historiadores Dudley Clendinen e Adam Nagourney, “daquela noite em diante a vida de milhões de homens gays e mulheres lésbicas começou a mudar rapidamente. As pessoas passaram a aparecer em público como homossexuais, exigindo respeito”.

É preciso lembrar as rebeliões de Stonewall pelo que de fato foram: o levante de uma população em revolta, depois de ser violentada ao limite, em nome de duas coisas que não só devem ser vistas como direitos essenciais mas também como premissas fundamentais de qualquer sociedade justa: o direito das pessoas serem quem quiserem ser, e o amor.



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