Sereias, ou volúpia.

Trecho do livro – A sabedoria dos Antigos – Cap. XXXI – Francis Bacon

Ulysses_and_Sirens – Herbert James Draper (‘Ulisses e as sereias’), pintura de 1909. Wikimedia.

A fábula das Sereias aplica-se com propriedade às seduções perniciosas do prazer, mas num sentido muito vulgar. Na verdade, acho a sabedoria dos antigos semelhante a uvas mal pisadas: alguma coisa é espremida, mas as melhores partes se perdem.

As Sereias eram filhas, diz-se, de Aqueló e Terpsícore, uma das Musas. No princípio possuíam asas; mas, tendo sido vencidas num certame pelas Musas, a quem ousaram desafiar, essas asas foram arrancadas e transformadas, pelas vencedoras, em coroas para si mesmas.

Por isso todas elas ostentam asas na cabeça, exceto a mãe das Sereias. Estas habitavam umas ilhas aprazíveis, de onde vigiavam os navios; quando um deles se aproximava, começavam a cantar, o que fazia os navegantes parar para ouvir e em seguida aproximar-se e desembarcar; então as Sereias os apanhavam e matavam. Sua melodia não era invariável: elas a adaptavam à natureza do ouvinte, para cativá-lo. Tão terrível era a calamidade que, de longe, as ilhas das Sereias apareciam cobertas de ossadas brancas insepultas. Para esse mal foram descobertos dois remédios: um por Ulisses, outro por Orfeu.

Ulisses mandou que seus companheiros tapassem os ouvidos com cera enquanto ele próprio, querendo avaliar o fato sem correr riscos, fez-se atar ao mastro, ordenando-lhes que não o libertassem mesmo que o pedisse por gestos. Orfeu, sem recorrer a esse expediente, elevou a voz e cantou acompanhado da lira o elogio dos deuses, conseguindo assim calar as Sereias e passar incólume.

A fábula relaciona-se à Moral e contém uma ideia elegante, embora óbvia. Os prazeres nascem da união da abundância e afluência com a hilaridade ou exultação da mente. Outrora os homens, à vista de seus encantos, deixavam-se arrebatar como que em suas asas. Mas a doutrina e a instrução conseguiram ensinar o espírito, se não a dominar-se, pelo menos a refletir e ponderar as consequências (arrancando, desse modo, as asas aos prazeres), o que redundou em grande honra para as Musas.

Pintura “As Sereias e Ulisses” . “The Sirens and Ulysses” by William Etty, 1837 – (c) Manchester City Galleries; Supplied by The Public Catalogue Foundation

De fato, logo que se viu por alguns exemplos que era capaz de combater a Volúpia, a Filosofia passou a ser encarada como coisa sublime, própria a elevar a alma da terra e tornar as ideias dos homens (que moram em sua cabeça) aladas e etéreas. Somente a mãe das Sereias continua a caminhar e não possui asas; por ela se entendem, decerto, os tipos mais ligeiros de saber, inventados e aplicados apenas para divertimento, como os que Petrônio tinha em grande conta. Condenado, buscou na própria antecâmara da morte assuntos amenos; e quando pediu livros para consolar-se, leu, diz Tácito, não os que prescrevem constância de ânimo, mas versos leves como estes de Catulo:

“Vivamos, minha Lésbia, e amemos,
Pagando por tudo quanto os velhos ensinam
Unicamente uma moeda.”

Ou estes:

“Discorram sobre os direitos os velhos tristes,
Sobre o justo e o injusto, servindo-se de critérios legais.”

Semelhantes doutrinas parecem pretender arrancar as asas das Musas e de volvê-las às Sereias. Diz-se que estas habitam ilhas, pois os prazeres geralmente buscam lugares retirados, longe dos olhares dos homens.

Pintura “As Sereias” de Wilhelm Kray – “The Sirens”, 1874. Wikimedia

No que toca ao canto das Sereias, seu artifício variado e efeito letal, ele depende de cada um e não precisa de intérprete. Mas a circunstância dos ossos vistos a distância como se fossem rochedos brancos é um ponto curioso: implica que as calamidades alheias, embora claras e conspícuas, não conseguem afastar os homens das corrupções da volúpia.

Resta falar da parte concernente aos remédios, ideia nobre e sábia sem ser complexa. Foram propostas para esse mal insidioso e violento três soluções, duas da filosofia, uma da religião. O primeiro método de fuga consiste em resistir aos começos e, com persistência, evitar as ocasiões que possam tentar e solicitar a mente.

É o ato de tapar os ouvidos com cera, único remédio para espíritos medíocres e plebeus como os companheiros de Ulisses. Todavia, os ânimos superiores, quando se enchem de constância e resolução, podem aventurar-se em meio aos prazeres, ali submetendo sua virtude a uma prova mais sutil e, como observadores e não como seguidores, examinar melhor a puerilidade e loucura da volúpia. É o que Salomão diz de si mesmo ao completar a enumeração dos prazeres que gozava: E minha sabedoria também ficou comigo.

Heróis dessa têmpera podem, pois, mostrar-se firmes nas maiores tentações e evitar os caminhos ínvios dos prazeres, desde que sigam o exemplo de Ulisses e reprimam as lisonjas e conselhos perniciosos de seus próprios seguidores, os mais aptos a abalar e enervar a mente. Mas, dos três remédios, o melhor em todos os sentidos é o de Orfeu, o qual, cantando e fazendo o elogio dos deuses, confundiu as vozes das Sereias e as deixou para trás. É que a meditação das coisas divinas supera os prazeres dos sentidos, não apenas em força, mas também em doçura.

* Trecho do livro – A sabedoria dos Antigos – Cap. XXXI – Francis Bacon

Francis Bacon, 1°. Visconde de Alban, também referido como Bacon de Verulâmio (Londres, 22 de janeiro de 1561 — Londres, 9 de abril de 1626) 


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