Inferno

Dicionário Filosófico – Voltaire

La Mappa dell’ Inferno – Sandro Botticelli – Wikipedia.

Desde que os homens vivem em sociedade, já devem ter-se apercebido que autênticos criminosos escaparam à severidade das leis. Estas punem crimes públicos e era preciso arranjar um freio para os crimes secretos; somente a religião podia ser esse freio. Os persas, os caldeus, os egípcios, os gregos imaginaram castigos para depois da morte; e, de todos os povos antigos que conhecemos, os judeus foram os únicos que só admitiram castigos temporais. É ridículo acreditar, ou fingirmos acreditar, baseando-nos nalguns passos muito obscuros, que o Inferno era admitido pelas antigas leis dos judeus, o Levítico ou o Decálogo, quando é certo que o autor dessas leis não disse uma única palavra que possa ter a menor relação com as punições aplicáveis na vida futura.

Sentimo-nos no direito de dizer ao redator do Pentateuco: “Sois um homem inconsequente e sem probidade, indigno do nome de legislador que tendes a arrogância de usar. Homessa! Pois conheceis algum outro dogma mais opressivo, mais necessário para a mentalidade do povo que o do Inferno, e não o declarais expressamente? E, enquanto todos os vossos vizinhos o admitem, contentai-vos em deixar adivinhar esse dogma por certos comentadores que ainda estão para nascer daqui a quatro mil anos e que aplicarão incríveis torturas a algumas das vossas palavras para ali subentender aquilo que vós não dissestes? Ou sois, por acaso, um ignorante, e não sabeis que tal crença era universal no Egito, na Caldeia, na Pérsia; ou sois um homem tão pouco atilado que, conhecendo perfeitamente esse dogma, não fizestes dele o fundamento da vossa religião?”

Os autores das leis judaicas o mais que poderiam era responder: “Confessamos que somos tremendamente ignorantes; que só muito tarde aprendemos a escrever; que o nosso povo era uma horda selvagem e bárbara que, confessadamente, vagueou perto de meio século por desertos impraticáveis; que, finalmente, usurpou um pequeno país, usando das mais odiosas rapinas e das crueldades mais detestáveis que a história registra. Não mantínhamos nenhum comércio nem convivência com os povos civilizados; como quereis, então que pudéssemos (nós, os mais terra­-a-terra de todos os homens) inventar um sistema espiritual?

Pintura de Dante Alighieri – Dante Domenico di Michelino Duomo Florence (Florença) – Wikipedia.

“Empregávamos o termo que corresponde a alma apenas para significar a vida; conhecíamos o nosso Deus e os seus ministros e anjos apenas como seres corporais: a distinção entre a alma e o corpo, a ideia de uma vida para além da morte só pode ser o fruto duma longa meditação e duma filosofia muito sutil. Perguntai aos hotentotes e aos pretos, que habitam um país cem vezes mais extenso que o nosso, se conhecem algo da vida futura. Julgamos suficiente tentar persuadir o povo que Deus punia os malfeitores até a quarta geração, quer pela lepra, quer por mortes súbitas, quer ainda pela perda dos parcos bens que possuíam”.

Podia retorquir-se a esta apologia: “Inventastes um  sistema cujo ridículo salta aos olhos; porque o malfeitor, que vivia na abundância e cuja família prosperava a olhos vistos, por força que se havia de rir de vós”.

O apologista da lei judaica então responderia: “Enganai-vos; porque, para um criminoso que raciocinasse com critério, em proporção havia cem que não raciocinavam nada. Aquele que, tendo cometido um crime, não se sentia punido no corpo, nem no corpo do seu filho, sentia temores pelo neto. Ademais, se nem sempre lhe aparecia uma úlcera purulenta, de que éramos atacados com freqüência, mais cedo ou mais tarde vinha a rebentar-lhe pelo corpo: em qualquer família acontecem sempre casos azarentos e facilmente lhes fazíamos acreditar que essas desgraças eram ordenadas por uma mão divina, que assim vingava pecados secretos”.

Será fácil replicar a esta resposta, dizendo: “As vossas desculpas não valem nada, porque todos os dias podemos observar o fato de pessoas, muito honradas e tementes a Deus, perderem a saúde e os bens; e se não há famílias onde desgraças não sucedam, e se tais desgraças são castigos de Deus, então todas as vossas famílias seriam redutos de traficantes e ladrões”.

Pintura Dante e Virgílio no Inferno, por Bouguereau, no Museu de Orsay (da obra “A Divína Comédia”)- Wikipedia

O sacerdote judeu poderia ainda argumentar ; diria que há desgraças próprias da natureza humana e outras que são ordenadas expressamente por Deus. Mas fanamos ver a este teimoso argumentador o ridículo que se toma pensar que a febre e a saraiva ora são uma punição divina, ora um fenômeno natural.

Entre os judeus, os fariseus e os essênios admitiram a crença num Inferno a seu modo; esse dogma já tinha transitado dos gregos para os romanos e foi, depois, adotado pelos cristãos.

Vários foram os Padres da Igreja que não acreditaram nas penas eternas: parecia-lhes coisa absurda pôr a assar durante a eternidade inteira um pobre homem, só por ter roubado uma cabra. Por mais que Virgílio diga, no canto sexto da Eneida:

. . .Sedet aeternumque sedebit Infelix Theseus. 7 5

Em vão o poeta pretende que Teseu para sempre está sentado numa cadeira e que esta postura constitui o seu suplício. Outros acreditavam que Teseu era um herói e não está sentado no Inferno, mas que está nos Campos Elísios.

Não há muito tempo ainda, um bom e honesto ministro huguenote pregou e escreveu que os condenados haviam de ter um dia perdão e que era necessária uma proporção entre o pecado e o suplício e que uma falta momentânea não pode merecer um castigo infinito. Os sacerdotes, seus confrades, destituíram este juiz, demasiado indulgente; um deles disse-lhe: “Meu amigo, acredito tão pouco como tu nas penas eternas; mas é bom que a tua criada, o teu alfaiate e até o teu procurador acreditem nelas”.

Texto da coleção “Os Pensadores”, Vol. XXIII – Voltaire – Dicionário Filosófico, pg. 227.

François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire (Paris, 21 de novembro de 1694 — Paris, 30 de maio de 1778) – Wikipedia


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