Produção de gelatina com supostos efeitos curativos, feita a partir das peles dos animais, dita o abate de 4,8 milhões de burros anualmente, o que pode conduzir em pouco tempo ao colapso das suas populações.
Por Diário de Notícias; Bahia Política; PETA; Vegazeta; El Pais.
A exploração e massacre de milhões desses animais anualmente é denúncia antiga, feita por ONGs como a britânica Donkey Sanctuary, e a PETA, que delatam o comércio e abate indiscriminado destes animais, não apenas na China, mas também noutros países, para a produção do chamado ejiao, uma gelatina que é utilizada na medicina chinesa e que tem supostos efeitos curativos para problemas tão diversos como a tosse, a insônia ou as náuseas.
Na China, a procura do ejiao é enorme e para dar resposta a essa tendência são mortos anualmente 4,8 milhões destes animais, oriundos não apenas da China, mas de outros países.
A continuar esta prática, em apenas cinco anos as populações destes animais poderão ficar reduzidas a menos de metade dos atuais efetivos, alerta a Donkey Sanctuary no seu relatório Under the Skin (Sob a pele, em tradução livre).
Os números do relatório contam o essencial desta história. Anualmente, as peles de 4,8 milhões de burros são transformadas em gelatina, o que já conduziu a uma diminuição de 59% da população destes animais na China, de 11 milhões em 1992, para 4,6 milhões em 2017.
Uma simples conta aritmética mostra que o país tem de importar a maioria dos animais de que necessita para produzir o ejiao e é isso que explica que as populações da espécie estejam a diminuir em ritmo acelerado noutros países também. É o caso, por exemplo, do Brasil, que perdeu 27% da população de burros desde 2007, do Botswana (menos 37%) ou do Quirguistão (menos 53%).
Estes e outros países, como a África do Sul, Estados Unidos, Índia ou Quênia são exportadores ativos de burros. Neste último país africano, o preço de cada animal aumentou de 78 libras (91 euros) para 156 (205 euros) entre 2016 e 2019, tornando-o num artigo de transação muito apetecido.
Como se não bastasse, o comércio dos animais faz-se em condições tais que 20% deles morrem durante o transporte, denuncia o relatório.
As condições em que são mantidos “são absolutamente horrendas em alguns dos locais onde são massacrados, no âmbito deste comércio”, afirma Faith Burden, diretora operacional da Donkey Sanctuary”, citada no diário britânico The Guardian.
Vídeo revela a crueldade por trás da produção do Ejiao
Um vídeo foi divulgado em maio deste ano a cruel realidade por trás do comércio chinês de ejiao, a gelatina obtida a partir do cozimento da pele de burros e jumentos.
As imagens foram registradas em matadouros regulamentados no Quênia, na África, mas poderiam ser em qualquer outro lugar que abate burros e jumentos que servirão de matéria-prima para a indústria chinesa de ejiao, segundo a PETA.
Nos últimos anos, o Quênia abriu três matadouros para o abate de asnos. Os animais, comprados de países como Etiópia, Tanzânia e Uganda, são colocados em caminhões e obrigados a suportarem viagem de até dois dias sem comida e água até o momento do abate.
Mas o vídeo que a PETA registrou vai muito além disso. Mostra a violência explícita que burros e jumentos vivem antes mesmo do abate. No caminho para o matadouro, há asnos que não resistem à viagem e morrem.
Em uma das cenas, um dos animais, já bastante debilitado, não consegue se levantar. Então eles o chutam e o deixam para morrer. Outros são agredidos com um instrumento de ferro.
Vários países, como o Mali, o Gana, a Etiópia, o Sudão, a Nigéria ou Chade baniram este comércio, mas há indícios de que existe tráfico destes animais em pelo menos em alguns deles, nota o relatório.
A PETA disponibiliza em seu site um formulário para pressionar o governo do Quênia, você pode assinar aqui.
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Felizmente, os produtos ejiao geralmente têm um identificador em inglês na embalagem, mas o ingrediente também pode ser listado com alguns nomes diferentes. Cuidado com os produtos que contêm “óleo de burro”, “gelatina de couro de burro”, “pele de burro”, “cola de burro” ou “cola de couro de burro”.
Ele também vem em diferentes formas: pode estar em quadrados, blocos ou grânulos; misturado com nozes, sementes ou tâmaras; ou derretido em misturas de chá ou bebidas à base de plantas. Não importa como seja apresentado, a fonte ainda é a mesma.
Exploração dos jumentos no Brasil
No Nordeste brasileiro, com a modernização dos meios de produção e da postulação de que já não há espaço para os jumentos, surgiram mais matadouros – um triste fim para um animal explorado no Brasil desde 1534, quando chegou a primeira leva de asininos, e adaptaram-se tão bem ao clima semiárido que se tornaram símbolo do trabalho pesado no interior nordestino, “o maior desenvolvimentista do sertão”, como cantou Luiz Gonzaga.
Ignora-se que jumentos são animais que vivem em média 25 anos, mas que em determinadas condições podem chegar a 40 anos. No Brasil, o que favorece o cenário de abate de jumentos é a crença de que quando esse animal se torna desnecessário como “instrumento de trabalho” ou se torna “fraco”, não há problema em abandoná-lo ou vendê-lo para algum matadouro.
Em 1977, Chico Buarque já cantava sobre a cruel realidade servil desse animal na música “O Jumento”: “Jumento não é o grande malandro da praça. Trabalha, trabalha de graça. Não agrada ninguém. Nem nome não tem…”
Que o fiel companheiro do sertanejo poderia despertar o interesse de grandes investidores estrangeiros foi uma surpresa até para autoridades brasileiras. Nem a então ministra da Agricultura, Kátia Abreu, acreditou no pedido feito durante sua viagem à Ásia em 2015.
“Pareceu piada”, escreveu no Twitter sobre um empresário chinês interessado em importar asininos. “Inacreditável, mas sua demanda é de 1 milhão de jumentos [por] ano”.
O Brasil nem sequer tem um milhão de jumentos para vender. Em 2012, o IBGE contabilizou 902 mil animais no país, sendo 97% (877 mil) no Nordeste. Mesmo assim, em julho de 2017, a Bahia começou a exportar carne e couro à China, com meta de enviar 200 mil unidades por ano.
Em um ano e quatro meses após o acordo, mais de 100.000 jumentos foram mortos nos três frigoríficos da Bahia autorizados pelo governo federal —nos municípios de Amargosa, Itapetinga e Simões Filho. Outros abatedouros registrados para a atividade estão em Estados onde há poucos jegues para suprir o mercado. Se o ritmo de abate chegar à expectativa chinesa, a espécie pode desaparecer em menos de cinco anos no Nordeste.
Jegues ficam confinados
Foi o município de Itapetinga, no Sudoeste baiano, que protagonizou as cenas mais duras de maus-tratos em 2018. Numa fazenda ao lado do Frigorífico Regional Sudoeste, mais de 800 jumentos viviam caídos no solo, com fome e sede. Outros 200 foram encontrados mortos.
Urubus chamaram a atenção de moradores que denunciaram a fazenda. Em um vídeo feito por eles, um jumento filhote tenta sair do corpo da mãe, fraca demais para parir. Ambos morrem. Outro jumento, bastante fraco, agoniza por não conseguir se livrar de corpos que o sufocam.
Em novembro de 2018, após as denúncias, a Justiça da Bahia proibiu o abate. Mas a pressão empresarial derrubou a liminar em setembro deste ano. O Tribunal Regional Federal (TRF) da 1º Região entendeu que a suspensão impôs “grave lesão à ordem e a economia da região” e provocou “perda de investimentos nacionais e internacionais”, sem exemplificar o prejuízo.
A fazenda em Itapetinga era arrendada pela empresa chinesa de intermediação Cuifeng Lin, homônimo de sua proprietária. Ela e o marido, Zenan Wen, foram indiciados. A reportagem não conseguiu encontrá-los.
“Era uma coisa terrível, nunca vista aqui”, lembrou o delegado de Itapetinga, Irineu Andrade, que os responsabilizou por crimes de maus-tratos e poluição do rio, causada pela decomposição dos animais. “Não tinha alimento suficiente, os animais iam no rio beber água e ficavam boiando, porque não conseguiam voltar [de tão fracos]”.
Dias depois do escândalo, uma segunda fazenda foi interditada no município. O dono João Batista, que recebia R$ 150 por caminhão carregado para pernoite dos animais, foi multado. “Faz pena demais, você sofre junto com eles”, afirmou Batista, que se arrependeu do acordo. “Os jegues já saíam de Pernambuco passando necessidade e ficavam dois, três dias com fome, chegavam aqui e ruíam todos os paus [das plantas]”.
Cinco meses depois, em Euclides da Cunha, a 700 km de Itapetinga, novas denúncias de maus-tratos surgiram envolvendo a Cuifeng Lin. Na fazenda Santa Isabel, outros 800 animais viviam em condições precárias semelhantes. Pelo menos outros 400 estavam mortos.
“Nunca chegou um caminhão aqui com GTA”, observou Márcia Costa Miranda, responsável pela propriedade. “Eu achava errado, porque tinha jumento morrendo demais, mas eu não sou do órgão fiscalizador, ia fazer o quê?”
A agricultora lembra que o grupo dava pouca ração aos animais propositadamente. “Eles diziam que os desnutridos eram bons porque a pele descolava melhor”, conta Miranda.
Três chineses e um brasileiro da Cuifeng Lin coordenavam a chegada de caminhões carregados no período que o abate estava suspenso judicialmente, e os jumentos se acumulavam confinados numa área apertada e sem pasto.
Grupo quer criar santuário de jumentos resgatados na Bahia
Um grupo de pesquisadores e veterinários da Bahia está se mobilizando para desenvolver um programa de proteção a jumentos vítimas de maus-tratos que escaparam do abate.
Além de pessoas interessadas em adotar os animais, o grupo planeja a criação de uma espécie de santuário para produzir estudos sobre o mamífero. Integrante do grupo dos equídeos, que inclui animais como cavalo, burro e mula, o jumento, também chamado de asno e jegue, é tradicionalmente usado no Nordeste para transporte de carga.
Vários animais foram resgatados de fazenda na cidade de Euclides da Cunha, distante cerca de 300 km de Salvador. Segundo a Folha de S. Paulo, uma vistoria da prefeitura no fim de janeiro constatou que cerca de 800 jumentos viviam em um ambiente árido com pouca água e comida e adoecidos. Segundo o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, que se tornou, em situação emergencial, fiel depositário dos animais, cerca de 200 deles sobreviveram. Desse total, 30 foram adotados e ganharam um novo lar.
A nova casa dos animais adotados é a fazenda de Thereza Bittencourt, professora do curso de veterinária da UFBA (Universidade Federal da Bahia), em Serra Preta (a cerca de 170 km da capital). É lá que deve ser criado o santuário, cujo objetivo será produzir conhecimento sobre o animal.
A história virou alvo de investigação do Ministério Público da Bahia, que remeteu o processo ao Ministério Público Federal em Salvador no início do ano. O MPF, por sua vez, afirmou que o processo tramita na Justiça e que, até o momento, não chegou para manifestação do órgão.
O episódio mobilizou advogados e veterinários, que conseguiram em dezembro de 2018 uma liminar da Justiça Federal para proibir o abate de jumentos na Bahia. A liminar, contudo, foi suspensa em setembro deste ano pelo Tribunal Regional Federal.
Hoje, há três frigoríficos na Bahia que fazem o abate de equídeos: um de equinos (cavalo e égua) e outros dois de asininos (jumento e jumenta), segundo o Ministério.
Como a pele é muito cobiçada pela China para produção do ejiao, as exportações seguem com força.
De janeiro a outubro deste ano, foram exportadas 2.117 toneladas de carne de equídeos, que renderam US$ 4,9 milhões (mais de R$ 21 milhões), de acordo com dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Rússia e o Vietnã lideram a importação de carne de equídeos do Brasil (em peso e valores). Já a exportação de pele chegou a 53 toneladas e rendeu US$ 129.441 (cerca de R$ 550 mil). Não foram informados os países que mais importam.