O crucifixo na vagina

É comum ver gente reduzindo a importância histórica do feminismo apelando a casos isolados e, sim, lamentáveis, como fez a ministra Damares

Por UOL e Mariliz Pereira Jorge para a Folha.

A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, durante o segundo dia da Cpac – 12.out.2019 – Bruno Santos/Folhapress

“Estou aqui há 24 horas e ninguém me ofereceu ainda um cigarro de maconha e nenhuma menina introduziu um crucifixo na vagina.” Desta forma a ministra Damares Alves, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, abriu seu discurso em 12/10 em um evento conservador em São Paulo.

Em tom missionário, ela foi responsável pelo discurso mais aplaudido da CPAC Brasil (Conferência de Ação Política Conservadora) do dia 12/10. Ela enalteceu o conservadorismo, defendeu o governo, reclamou de ideologia de gênero e criticou “o outro lado”.

“A cada dia eu me assusto da forma como eles estão nos vendo. Eles estão incomodados porque o Brasil já mudou”, afirmou a ministra, sob aplausos, sem explicar quem seriam “eles”.

“O presidente machista entrega para o Brasil o Ministério da Mulher. Consegue entender a loucura que está na cabeça desse povo? Eles não estão entendendo nada!”, declarou a ministra. “O presidente machista já sancionou seis leis de proteção à mulher. Chora esquerda!”

Ela havia sido convidada para falar sobre os resultados do seu ministério. Ela, no entanto, afirmou que esperou 20 anos para participar de um evento como este e pregou a organização dos conservadores. “Se a gente não se organizar, eles vão voltar”, declarou.

“Eles usam números, manipulam estatísticas, manipulam informações para jogarem sujo. Eles não estão mortos! Estão vivos!”, pregou Damares, em tom combativo. “Vocês estão falando em reeleição? Eu estou! Precisamos de pelo menos 12 anos para mudar o Brasil.”.

Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos fez discurso de abertura da Conferência de Ação Política Conservadora em 12/10/19
(Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Em defesa dos valores conservadores

As chamadas pautas de costumes foram o centro do discurso. Damares afirmou que o seu ministério respeita os homossexuais, mas não os promove.

“Respeitamos eles, mas sem fazer a promoção. Estamos lutando contra a violência contra negros, gays, indígenas. Estamos protegendo todos”, declarou.

Ela também fez referência a uma de suas falas mais polêmicas. “Quando eu falei que menino veste azul e menina veste rosa, o recado que eu mandei é que o menino vai ser menino, menina vai ser menina”, afirmou a ministra. “O governo Bolsonaro veio para dizer ‘chega de confusão no Brasil, deixa o menino ser menino’!”

Damares Alves em entrevista no estúdio UOL Folha de BrasíliaImagem: Kleyton Amorim / UOL

Infanticídio indígena

Em meio a “aleluias”, Damares afirmou que o deus Tupã, dos indígenas, trouxe o presidente Jair Bolsonaro para proteger os índios, quando falou em infanticídio indígena, um dos temas dos quais ela fala com mais frequência.

“Em torno de 40 povos no Brasil matam suas crianças quando nascem filhas de mãe solteiras, gêmeas ou qualquer deficiência física e mental e povo que tava aí no poder diz que não pode salvar essas crianças porque é cultura. Hipócritas”, proclamou, sob gritos de “assassinos!”.

“Enquanto deixarmos os índios matarem suas crianças, eles serão um povo reduzido e pequeno. É isso que eles queriam: um povo triste, reduzido e pequeno”, declarou.

“Riram de mim” Damares acabou seu discurso em tom emocionado, ao lembrar do abuso sexual que sofreu na infância e reclamou da perseguição que tem sofrido desde que aceitou assumir a pasta.

“Foram cruéis comigo, foram muito malvados comigo. Não respeitaram a minha história, não respeitaram a minha dor. Riram de mim, riram quando eu tive a coragem de dizer pro Brasil que fui abusada sexualmente”, declarou. Ela revelou já ter sofrido 179 ameaças de morte.

“Estamos pagando nosso preço, mas a gente vai mandar um recado para a esquerda: quando a gente aceitou o desafio, sabia que não seria fácil. Pode bater, quanto mais bate, mais esse governo cresce”, conclui sobre gritos e aplausos em pé.

Ativistas do Femen em ato contra o Papa no Vaticano em 2014

Você já enfiou o crucifixo na vagina hoje?

Pelo discurso da ministra Damares Alves, mulheres e meninas que não se identificam com a ideologia praticada por ela e o governo que representa, todas nós, que somos as inimigas, as impuras, as vadias, temos em nossa rotina o hábito de enfiar crucifixos na vagina.

Damares atualizou o check list da mulher que não reza a cartilha do conservadorismo. Entre todas as tarefas, que incluem trabalho, escola, filhos, afazeres domésticos, academia, terapia para aguentar tanta gente louca, tem também o momento “crucifixo da vagina”. Porque, claro, feminista que se preze não pode pular essa parte do ritual.

Para quem tem a sorte de não saber tudo o que acontece no Brasil de Bolsonaro e de seus ministros aloprados, a ministra foi uma das palestrantes mais aplaudidas do CPAC Brasil (Conferência de Ação Política Conservadora).

Em tom de pregação, Damares solta esta maravilha: “Estou aqui há 24 horas e ninguém me ofereceu ainda um cigarro de maconha e nenhuma menina introduziu um crucifixo na vagina…”

Liberdade de expressão é uma maravilha, mas tem dessas coisas aí. Conheço gente que sob efeito de maconha não falaria uma bobagem dessa.

Mas de onde a ministra tirou isso? Dos livros de Simone de Beauvoir, da Chimamanda Ngozi, das séries da Lena Dunham? Será que tem curso? Introdução à Introdução de crucifixo na vagina? Nada disso.

Em 2013, durante a Jornada Mundial da Juventude com o Papa Francisco, a Marcha das Vadias ocupou um trecho da praia de Copacabana, onde o evento acontecia, para protestar contra as políticas da Igreja Católica.

A coisa desandou. Um preservativo é colocado na cabeça da imagem de Nossa Senhora, onde uma das manifestantes simula masturbação. Essa e outras imagens sacras foram quebradas. E uma cruz é introduzida no ânus de um homem. Sim, isso aconteceu.

O casal envolvido chegou a ser indiciado pelo Ministério Público Estadual, do Rio de Janeiro, pela prática de ato obsceno em local público e de preconceito de religião.

As organizadoras da Marcha, por meio de nota, lamentaram a ação do casal e afirmaram que nada daquilo tinha sido programado pelas responsáveis pelo protesto.

Tudo foi fotografado, gravado e ganhou as redes sociais. O mesmo episódio já foi usado inúmeras vezes para difamar feministas e até paradas LGBTQI+.

É comum ver gente reduzindo a importância histórica do feminismo e mesmo a nova onda do movimento apelando a casos isolados e, sim, lamentáveis, como fez a ministra Damares.

Manifestantes extremistas existem em todos os movimentos. Na maioria das vezes prestam desserviço às suas próprias causas ao escolherem ações, bandeiras, discursos que, além de não promover nenhum tipo de mudança, despertam antipatia e desprezo nos menos sensíveis às demandas sociais, que essas minorias pouco representam.

O intuito claro da ministra era relacionar um ato nojento, obsceno e intolerante ao feminismo e, consequentemente, à esquerda, como se o mundo fosse dividido assim, e à direita estivessem apenas as mulheres cheias de virtudes.

Ao fazer isso, Damares não ofende apenas as feministas, mas todas as brasileiras que não rezam por sua cartilha alarmista e demagoga.

Mostra que não é ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de todas as brasileiras, mas apenas representante dessa turma saída lá da Idade Média, que se reuniu neste fim de semana para promover sua caça às bruxas.

O presidente Jair Bolsonaro empossa a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, durante cerimônia de nomeação dos ministros de Estado, no Palácio do Planalto – 01/01/2019 (Valter Campanato/Agência Brasil)


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