Entre 2003 e 2004, Eduardo Bolsonaro exercia funções em um cargo comissionado de 40 horas semanais na liderança PTB; ao mesmo tempo, cursava Direito no Rio de Janeiro.
Aos 18 anos, três dias após ser aprovado para o curso de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Eduardo Bolsonaro foi nomeado para um cargo comissionado de 40 horas semanais na liderança do então partido do pai na Câmara dos Deputados, o PTB, comandado por Roberto Jefferson.
Ao mesmo tempo que Eduardo Bolsonaro exercia funções em um cargo comissionado de 40 horas semanais na liderança do então partido do pai, o PTB, na Câmara dos Deputados, ele cursava o curso de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É o que mostra uma reportagem da BBC News publicada nesta quinta-feira 03/10.
Com a contratação, o filho 03 do presidente entrava com o pé direito em um mercado de trabalho marcado naquele ano por índice recorde de desemprego.
Por um ano e quatro meses, o calouro de Direito ocupou um cargo que pagava o equivalente a R$ 9,8 mil por mês, em valores atuais, um rendimento maior que o de 98% dos brasileiros.
A regra que proíbe o nepotismo, e assim impede a contratação de parentes de políticos, só viria cinco anos mais tarde.
Mas, segundo as normas da Câmara dos Deputados vigentes à época, o posto foi ocupado de forma irregular. Só poderia ter sido preenchido por alguém que desse expediente no Congresso, já que esse tipo de cargo tem “por finalidade a prestação de serviços de assessoramento aos órgãos da Casa, em Brasília. Desse modo, (os servidores) não possuem a prerrogativa de exercerem suas atividades em outra cidade além da capital federal”.
Ou seja, não poderia ser cumprido remotamente por um funcionário que vivia a quase 1.100 quilômetros de distância no Rio de Janeiro, onde Eduardo Bolsonaro cursava normalmente, segundo apurou a reportagem da BBC News Brasil, os primeiros semestres da faculdade de Direito da UFRJ.
Apesar da distância de quase 1.100 quilômetros entre os dois locais, no entanto, a Câmara dos Deputados garante que no período de 20 de fevereiro de 2003 a 1 de julho de 2004, quando Eduardo ocupou o cargo de assistente técnico, não houve registros de faltas ou ausências. O registro foi resposta a um pedido de Lei de Acesso à Informação.
Os registros também mostram que não houve faltas do irmão Flávio Bolsonaro no período em que ele exerceu o posto de assistente técnico de gabinete na liderança do PPB, então partido do pai, entre 2000 e 2002, enquanto também cursava a faculdade de Direito na Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro.
Questionada, a casa afirmou que, antes da Resolução 1/07, o Ato da Mesa 11/1995 regulamentava a frequência e a lotação dos CNEs, cargo ocupado por Eduardo à época. Segundo a Câmara, até a publicação do Ato da Mesa 86/2006, não havia vedação expressa à lotação do servidor em outras localidades, o que possibilitava o entendimento de que poderiam trabalhar fora de Brasília.
Questionado pela reportagem sobre a função na Câmara, Eduardo Bolsonaro demonstrou não ter memória de seu primeiro emprego público formal. Mas seu próprio pai já admitiu, em 2005, que empregou o zero três. “Já tive um filho empregado nesta Casa e não nego isso. É um garoto que atualmente está concluindo a Federal do Rio, uma faculdade, fala inglês fluentemente, é um excelente garoto. Agora, se ele fosse um imbecil, logicamente estaria preocupado com o nepotismo“, disse Jair Bolsonaro.
A BBC News Brasil encontrou a comprovação de contratação de Eduardo Bolsonaro em pesquisa no site da Câmara dos Deputados. Já o currículo público do próprio deputado federal, também no site da Casa, não faz nenhuma referência ao posto no PTB na seção “Atividades Profissionais e Cargos Públicos”.
De um irmão para o outro
Inicialmente, Eduardo fora nomeado em dezembro de 2002 para um cargo comissionado na liderança do PPB (ao qual o pai era filiado à época, atual PP). O mesmo posto fora ocupado seis meses antes pelo irmão mais velho, Flávio. Este, aliás, havia ocupado esse cargo logo após a segunda mulher de Jair Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle.
Segundo informações da Câmara dos Deputados, esse emprego pagava cerca de R$ 12,6 mil por mês, em valores atuais.
Só que a nomeação de Eduardo, então com 18 anos, foi anulada três semanas depois que ele assumiu o cargo — o boletim administrativo com a anulação não traz explicações, mas a decisão coincide com a mudança de partido do pai, que trocou o PPB pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) à época.
Dois meses depois, em fevereiro de 2003, Eduardo passou a ocupar um outro cargo também comissionado na liderança da nova sigla do pai, porém em posto com um salário menor que o do anterior (R$ 3.904 à época, ou quase R$ 9.780 em valores atuais).
O posto estava alocado na liderança do PTB, então nas mãos de Roberto Jefferson, parlamentar que inchou o partido ao entrar na coalizão do primeiro governo Lula e depois foi o pivô do escândalo do mensalão.
Questionado sobre a função na Câmara, Eduardo Bolsonaro demonstrou não ter memória de seu primeiro emprego público formal.
Em coletiva de imprensa, em julho de 2019, um repórter da BBC News Brasil o questionou sobre o emprego na Câmara a partir de 2003:
Eduardo Bolsonaro – Dois mil e…?
BBC News Brasil – 2003.
Eduardo Bolsonaro – Tá.
BBC News Brasil – Como é possível isso?
Eduardo Bolsonaro – Ué, você nunca conseguiu trabalhar e estudar ao mesmo tempo na sua vida, não?
BBC News Brasil – Em cidades diferentes?
Eduardo Bolsonaro – Em cidades diferentes?
BBC News Brasil – O sr. era servidor aqui em Brasília e cursava no Rio, não?
Eduardo Bolsonaro – Assumindo alguma atividade partidária… Agora… Em 2003?
BBC News Brasil – Em 2003 e 2004, por 16 meses.
Eduardo Bolsonaro – Olha, eu teria que puxar forte pela memória aqui então… Mas eu acho que não teria problema nenhum, conseguir trabalhar, prestar um serviço partidário. Inclusive eu já tive assessor meu que eu encontrava com ele uma vez por mês no máximo, né? (O assessor) prestava a minha assessoria de maneira local no litoral de São Paulo.
Outro lado
Procurado novamente nesta terça-feira (1º) e também na quarta-feira (2) por e-mail e em seu gabinete na Câmara para comentar o assunto, Eduardo Bolsonaro não quis responder aos questionamentos da BBC.
O presidente Jair Bolsonaro, por meio da assessoria de imprensa da Presidência da República, afirmou que não comentaria o assunto.
Aliado do governo Bolsonaro e presidente do PTB, Roberto Jefferson disse não se lembrar se Eduardo Bolsonaro trabalhou na liderança do partido no período em que ele era o líder petebista na Câmara. E sugeriu que a reportagem procurasse a liderança atual do partido. Esta, por sua vez, não respondeu ao pedido de entrevista.
Procurada, a assessoria de imprensa da liderança do PTB afirmou que não iria responder às perguntas da BBC News Brasil e que, considerando o tempo transcorrido, não guardava nenhum documento que evidenciasse que Eduardo realmente trabalhou lá.
Segundo a Câmara, as atribuições do cargo ocupado por Eduardo à época incluíam, por exemplo, “fazer relatórios das reuniões realizadas”, “acompanhar o resultado das votações plenárias e em comissões” e “orientar e assistir os deputados nas votações de matérias no Plenário e nas comissões”. Em 2007, uma resolução restringiu de modo mais taxativo, entre outros pontos, o exercício da função fora de Brasília.
Questionada pela BBC Brasil, a Câmara afirmou que essa prática já era proibida antes da resolução, conforme resposta por escrito abaixo.
Tradição de nomear familiares
A prática de empregar parentes era comum na família Bolsonaro. Flávio, o filho 01 do presidente, também ocupou cargo de 40 horas semanais na liderança do partido do pai na Câmara dos Deputados, em Brasília, enquanto vivia, estagiava e fazia faculdade, também de Direito, no Rio de Janeiro.
Bolsonaro indicou ou nomeou para cargos não apenas os filhos mas também suas então esposas e parentes delas. Em 2005, quando estava filiado ao PFL (quinto partido de sua carreira), afirmou na Câmara que o debate entre parlamentares sobre o nepotismo era hipócrita. Para ele, caberia aos eleitores julgar se a prática é certa ou errada.
Em 2008, no entanto, uma decisão do Supremo Tribunal Federal proibiu a contratação de parentes nos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). A partir dali, não poderia haver, por exemplo, contratações de parentes de autoridades e de funcionários para cargos de confiança e em comissão.
Ou seja, o nepotismo foi inicialmente proibido no Brasil por meio de uma decisão do STF.
Agora, essa mesma proibição pode barrar a nomeação de Eduardo para o posto de embaixador em Washington. A indicação foi feita pelo próprio pai e será submetida ao Senado assim que for formalizada.
Há divergências se o cargo de embaixador é de natureza política, como os de ministros e secretários. Nesse caso, não estaria contemplado na determinação do STF.
Em 2018, a Segunda Turma do STF afirmou que a súmula vinculante que veda o nepotismo não se aplica à indicação para cargos de natureza política — não há menção específica, no entanto, ao posto de embaixador.
Para ministros da Corte, cargos em comissão ou de confiança são meramente administrativos, e os de natureza política são postos de confiança ligados ao exercício do poder (Executivo, mais especificamente), e portanto de livre nomeação e exoneração do mandatário.
Um parecer de dois consultores do Senado, Casa responsável por sabatinar e avalizar ou não nomes indicados ao cargo de embaixador, afirma que o posto em Washington é um cargo comissionado comum, e por isso o presidente da República não poderia indicar o próprio filho ao cargo. O documento, de caráter consultivo, cita a decisão do Supremo de 2008.
Intercâmbio nos EUA: ‘Trabalho humilde’
Em busca da habilidade de falar inglês, que serviria anos depois como uma das justificativas para Bolsonaro decidir indicá-lo ao cargo de embaixador, Eduardo fez um intercâmbio de “Work Experience” nos Estados Unidos, onde disse ter trabalhado em uma rede de lanchonetes e entregando pizza entre o fim de 2004 e o início de 2005, nas férias da faculdade.
E, embora a experiência de 16 meses na Câmara não pareça ter deixado lembranças para o filho do presidente, o trabalho de 4 meses nos Estados Unidos o marcaria profundamente.
“Ele fritou hambúrguer no passado sabe o porquê? Porque não tinha dinheiro para bancar lá. Qual a intenção dele em ficar seis meses nos Estados Unidos? Aperfeiçoar o inglês dele. Eu falei assim: fica, mas se você bancar a sua despesa. Fritou hambúrguer, entregou pizza. É a maneira que tem de conversar e está com um inglês muito bom, tenho certeza”, afirmou o presidente Jair Bolsonaro, na Argentina em 17 de julho deste ano.
Com o salário da Câmara como assessor do PTB por 16 meses, no entanto, Eduardo teria condições de pagar à vista o intercâmbio da empresa World Study, que custava à época cerca de R$ 4 mil, segundo apurou a BBC News Brasil.
“Nestes locais trabalhei como frontdesk de restaurante fast food, cozinheiro, caixa e faxineiro, pagava minhas contas e ainda voltei com um dinheirinho no bolso”, escreveu Eduardo no Facebook em dezembro de 2015 sobre os dois meses no Estado do Maine e outros dois no Colorado. Segundo ele, “além de aprender mais a língua inglesa pude experimentar a cultura local.”
Em seu texto, afirma que nos EUA “todos os trabalhadores são respeitados independente do seu salário” e “vergonhoso era viver da ociosidade”. “Também pudera, nos EUA o governo federal divulga com orgulho quando reduz os gastos com programas assistenciais, já aqui no Brasil o governo parece se sentir enobrecido quando amplia o guarda-chuva desses mesmos programas.”
Em um vídeo postado por ele em 2017, em frente à lanchonete onde trabalhou, ele afirma que “nos Estados Unidos eu aprendi que indigno é você não ter trabalho, não tem tempo ruim, você ganha aqui pelas horas trabalhadas”.
Depois do emprego comissionado no partido do pai, Eduardo voltaria a ocupar um posto da Câmara dos Deputados em 2015, desta vez como deputado federal eleito pelo PSC-SP. Foi o 61º mais votado de São Paulo, em uma campanha basicamente bancada pela família e por assessores ligados ao pai.