Dicionário Filosófico – Voltaire
Instinctus, impulsos, impulsion. Que potência nos impele?
Todo sentimento é instinto.
Uma conformação secreta entre nossos órgãos e os objetos forma nosso instinto.
Somente por instinto fazemos mil movimentos involuntários, do mesmo modo que por instinto somos curiosos, que procuramos a novidade, que a ameaça nos assusta, que o desprezo no irrita, que o ar submisso nos apazigua, que o choro nos enternece.
Somos governados pelo instinto como os gatos e as cabras. É mais uma semelhança que temos com os animais, semelhança tão incontestável como a do nosso sangue, das nossas necessidades, das funções do nosso corpo.
Nosso instinto não é nunca tão industrioso quanto os deles, nem mesmo se aproxima. Desde o momento do seu nascimento, um gamo ou um carneiro correm para a teta de sua mãe; uma criança morreria se a sua não lhe desse seu seio apertando-a em seus braços.
Quando grávida, nunca uma mulher foi invencivelmente determinada pela natureza a preparar com suas próprias mãos um lindo berço de vime para seu filho, como uma toutinegra o faz com seu bico e suas patas. Mas o dom que temos para refletir, unido às duas mãos industriosas que a natureza nos presenteou, eleva-nos até ao instinto dos animais e com o passar do tempo coloca-nos, por bem ou por mal, infinitamente acima deles. Esta proposição foi condenada pelos senhores do antigo Parlamento e pela Sorbonne, esses grandes filósofos naturalistas que, como se sabe, contribuíram muito para o aperfeiçoamento das artes.
Nosso instinto leva-nos inicialmente a surrar nosso irmão que nos magoa, se formos coléricos e mais fortes. Em seguida, nossa sublime razão nos faz inventar as flechas, a espada, a lança e, enfim, o fuzil, com o qual matamos nosso próximo.
Só o instinto nos leva igualmente a fazer o amor, amor omnibus idem, mas só Virgílio, Tibulo e Ovídio falam disso.
É só pelo instinto que um jovem serviçal detém-se com admiração e respeito diante do coche superdourado de um coletor do tesouro. A razão vem ao serviçal. Torna-se empregado do comércio, educa-se, rouba, torna-se por sua vez um grande senhor e enlameia seus antigos companheiros, languidamente estendido num carro ainda mais dourado do que aquele que admirou.
O que é esse instinto que governa todo o reino animal e que em nós é fortificado pela razão ou reprimido pelo hábito? Será a “divina et particula aurae“? Sim, sem dúvida, é alguma coisa divina, pois tudo o é. Tudo é o efeito incompreensível duma causa incompreensível. Tudo é determinado pela natureza. Raciocinamos sobre tudo e não nos damos nada.
* Texto da coleção “Os Pensadores”, Vol. XXIII – Voltaire – Dicionário Filosófico, pg. 230.