Trecho do livro – A sabedoria dos Antigos – Cap. IV – Francis Bacon
Diz-se que Narciso foi um jovem de extrema beleza, mas intoleravelmente soberbo e desdenhoso. Agradado de si mesmo e a todos os mais desprezando, levava vida solitária no cerrado dos bosques e coutadas, em companhia de um pugilo de amigos para quem ele era tudo. E aonde ia, seguia-o uma ninfa chamada Eco.
Assim vivendo, chegou certa feita, por acaso, à beira de uma fonte cristalina e estava-se no pico do dia debruçou-se; ao divisar nas águas sua própria imagem, perdeu-se numa contemplação e depois numa admiração tão extasiadas de si mesmo que não pôde afastar-se do espectro que mirava e ali ficou paralisado, até que a consciência o abandonou.
Foi então transformado na flor que traz seu nome, a qual desabrocha no começo da primavera. É flor sagrada das divindades infernais: Plutão, Prosérpina e as Eumênides.
Nessa fábula representam-se as disposições, e ainda a fortuna, daqueles que, cônscios de uma beleza ou dom que a natureza lhes deu graciosamente, sem atentar para seus méritos, acabam como que se apaixonando por si mesmos. A esse estado de espírito junta-se muitas vezes o enfado de apresentar-se em público ou tratar de assuntos políticos. É que tais assuntos os exporiam a inúmeras censuras e vilipêndios, capazes de perturbar e abater seu ânimo. Vivem assim vidas solitárias, reservadas e obscuras, rodeados de um círculo modesto de admiradores que concordam com tudo o que eles dizem, como se fossem um eco, e não cessam de bajulá-los. Depravados a pouco e pouco por semelhantes hábitos, inflados de orgulho e aturdidos pela autoadmiração, mergulham em tal desleixo e inércia que se atoleimam, perdendo todo o vigor e alacridade.
Elegantíssima foi a ideia de escolher a flor da primavera como símbolo de caracteres como esse – os quais, no início da carreira, vicejam e são celebrados, mas desmentem na maturidade as promessas da juventude. O fato de essa flor ser consagrada às divindades infernais também alude ao mesmo ponto, pois homens assim dispostos tornam-se inúteis e imprestáveis para tudo. Aquilo que não dá frutos e, como o navio, passa sem deixar traços, era consagrado pelos antigos às sombras e divindades infernais.
* Trecho do livro – A sabedoria dos Antigos – Cap. IV – Francis Bacon