Virtude

Dicionário Filosófico – Voltaire

(Gettyimages)

O que é a virtude? Beneficência para com o próximo. Poderei chamar a virtude ao que não seja fazerem-me bem? Sou indigente, és liberal; estou em perigo, tu socorres-me; enganas-me, dizes-me a verdade; sou ignorante, tu ensinas-me; chamar-te-ei sem esforço virtuoso. Mas que faremos das virtudes cardiais e teologais? Algumas hão de continuar a ser ensinadas nas escolas.

Que me importa que sejas temperante? Observas um preceito salutar, a tua saúde será melhor, felicito-te. Tens fé e tens esperança. Felicito-te ainda mais; a fé e a esperança abrir-te-ão o caminho da vida eterna. As tuas virtudes teologais são dádivas celestes; as cardiais são excelentes qualidades úteis à direção da tua vida; todavia, não são virtudes em relação ao teu próximo. O homem prudente faz bem a si, o virtuoso faz bem aos outros. São Paulo teve razão em dizer que a caridade é mais importante que a fé e a esperança. Mas como! Não admitiremos como virtudes senão as que sejam úteis ao próximo? E como posso admitir outras? Vivemos em sociedade; só é verdadeiramente bom para nós aquilo que faça o bem da sociedade. Um solitário será sóbrio, piedoso, usará um cilício; pois bem , será santo; mas não o considerarei virtuoso a menos que venha a praticar algum ato de virtude que aproveite aos outros homens. Enquanto permanecer só não é benfazejo nem malfazejo: para nós, é nada. Se São Bruno estabeleceu a paz entre as famílias, se socorreu a indigência, foi virtuoso; se jejuou , se orou na solidão, foi um santo. A virtude entre os homens é um comércio de benefícios ; o que não participa deste comércio, não deve ser contado entre os virtuosos . Se esse santo fosse do mundo, espalharia o bem, sem dúvida; mas, enquanto não for, o mundo terá razão em lhe recusar o nome de virtuoso; ele será para si e não para nós.

Porém, dir-me-eis, se um solitário é guloso, bêbado, entregue a deboches secretos consigo mesmo, será um vicioso; logo, será virtuoso se tiver as qualidades contrárias. Não estou de acordo: trata-se de um homem vil, se tiver os defeitos a que aludis; mas não é vicioso, mau, passível de punição, em relação à sociedade que não sofre quaisquer prejuízos em conseqüência dos atos desse homem. É de presumir que, se ingressar na sociedade, fará o mal, será vicioso; é mesmo mais possível que venha a ser um homem maldoso do que um solitário temperante e casto, ou venha a ser um homem de bem; pois, na sociedade, aumentam os defeitos e as boas qualidades diminuem.

Há quem produza uma objeção mais forte: Nero, o Papa Alexandre VI e outros monstros da mesma espécie, espalharam benefícios; respondo com arrojo que foram virtuosos nesses dias.

Alguns teólogos sustentam que o divino Imperador Antonino não era virtuoso; que era um estoico obstinado, que, não contente de comandar os homens, queria ainda por cima ser estimado por eles; que referia a si o bem que fazia ao gênero humano, que toda a vida foi justo , laborioso, benfazejo por vaidade e que se limitou a enganar os homens com as suas virtudes; e eu grito: “Meu Deus, dai-nos muitas vezes semelhantes patifes’·.

Texto da coleção “Os Pensadores”, Vol. XXIII – Voltaire – Dicionário Filosófico, pg. 300

François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire (Paris, 21 de novembro de 1694 — Paris, 30 de maio de 1778) – Wikipedia


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