Detenção arbitrária de crianças menores de 16 anos em celas sem água ou comida ou acesso para conversar com suas famílias, nudez forçada em detenções e outras formas mais graves de violência sexual, tortura, uso excessivo de violência; mortes e desaparecimentos. Mais de 200 manifestantes perderam a visão.
“Há uma violação dos direitos humanos, todos os dias, isso não é uma suposição, é algo que é, o que acontece. É por isso que precisamos de colaboração internacional, precisamos de fortes declarações sobre o que está acontecendo em nosso país com esse estado virtual de cerco ”, diz Constanza Schonhaut, ativista de direitos humanos e da Frente Amplio, com evidente angústia após verificar, em uma turnê noturna nas delegacias e comunas, a repetição de crimes cometidos pelo Estado por meio de suas forças armadas e de segurança. Embora “crimes” seja uma palavra que fica aquém em um território que tem em sua memória as feridas do terrorismo de Estado.”
“O presidente pretende tratar isso como se fosse uma catástrofe natural, como se fosse o resgate dos 33 mineiros.“ – Metáfora usada pelo presidente chileno Sebastián Piñera na apresentação de medidas de emergência em outubro – mas aqui há um surto social, um protesto maciço e transversal e os militares respondem ao povo.
Michel Bachellet, ex-presidente e atual Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU, disse hoje que enviará uma missão de “verificação” às denúncias. Foi um pedido de Piñera, certamente desesperado para defender sua idéia do Chile como um “oásis” latino-americano, onde duas reuniões de cúpula deveriam ocorrer em novembro e dezembro. A primeira seria a Apec – fórum comercial da Ásia-Pacífico, onde os chefes de estado da China e dos Estados Unidos se encontrariam; a segunda é a Cop 25 sobre mudança climática em um país com “áreas de sacrifício” em que empresas altamente poluentes estão instaladas em territórios de alta vulnerabilidade social. Bachellet, no entanto, não anunciou sua visita.
Detenção arbitrária, crianças menores de 16 anos em celas sem água ou comida ou acesso para conversar com suas famílias, nudez forçada em detenção e outras formas mais graves de violência sexual. Já existem oito queixas oficiais, e muitas outras que podem não ter sido relatadas por medo de represálias – tortura, uso excessivo de violência; mortes e desaparecimentos. A repressão, o retorno ao quartel das forças armadas e uma assembléia constituinte que revoga a constituição atual e que foi escrita no meio da ditadura militar, a vida institucional, continuam a gerar imagens de profundo desprezo pelos direitos humanos.
Quatro detidos “crucificados” na antena da delegacia de Peñalolén, amarrados pelos pulsos com esposas que ficaram sem comunicação; sem entrar em detalhes, claramente se percebe a crueldade tão manifesta. A denúncia foi feita quando o Instituto Nacional de Derechos Humanos (INDH) descobriu essa brutalidade em suas viagens.
Na porta da Faculdade de Medicina, uma dúzia de estudantes do ensino médio aguardavam pacientemente enquanto esperam atendimento para os ferimentos recebidos. Valentina Miranda, 19 anos, cursa o último ano do Liceo que frequenta a Tereza Prats, uma escola pública daqueles que não garantem a entrada nas melhores universidades. Ela é a líder da Comissão Nacional de Estudantes Secundários e membro do Partido Comunista. Ela está com contusões, queimaduras de gás, um tiro no ouvido que causou uma infecção e marcas das mãos dos policiais que a detiveram ilegalmente dentro do prédio onde mora seu parceiro, Pablo Ferrada.
Ao menos 230 pessoas perderam a visão, parcial ou completamente, durante os protestos que abalam o Chile há quase um mês, foram 45 em uma semana por causa de tiros de espingarda, segundo uma importante associação médica do país. Os ferimentos são causados por esferas de chumbo ou balas de borracha disparadas pelas forças policiais nas manifestações.
Ao dispararem as esferas, “quiseram me causar dor, vergonha, arrependimento, medo, mas sinto que provocou o efeito contrário: sinto mais raiva do que medo; mais ódio do que vergonha e é contra essas pessoas que estão aí fora, atirando, mutilando as pessoas”, diz Carlos Vivanco, um dos muitos manifestantes feridos em Santiago.
Este estudante secundarista perdeu a visão total do olho esquerdo há três semanas, quando foi a um protesto em seu bairro, La Pintana, na periferia da capital. Enquanto corria para fugir da polícia, foi atingido por oito esferas de chumbo no corpo, inclusive a que lhe causou a grave lesão ocular.
Por pouco não perdeu a visão do outro olho: outra esfera ficou encrustada na glândula lacrimal. Alguns centímetros a mais e Carlos teria tido o mesmo destino de Gustavo Gatica, um estudante de 21 anos, que ficou quase cego após ter sido atingido nos dois olhos por esferas na sexta-feira passada.
“Estava claro do que são capazes, mas não pensei que tivessem permissão para atirar assim, como açougueiros”, afirma o jovem.
Em 20 de outubro, José Soto estava cantando palavras de ordem contra o governo na avenida principal de Santiago quando os policiais usaram suas armas contra ele.
— Vi alguns policiais carregando suas armas — disse o eletricista de 23 anos na terça-feira. — De repente senti um forte golpe no nariz. Foi tão rápido. Eu não conseguia ver nada com o olho direito e, quando o toquei, minha mão estava cheia de sangue.
Uma bola de borracha de 9 milímetros — um projétil padrão para as forças de choque do Chile — explodiu em seu globo ocular direito antes de bater no nariz dele.
— Os médicos me disseram que eu poderia ter perdido os dois olhos se minha cabeça estivesse em uma posição diferente — disse Soto, que estava entre cerca de uma dúzia de pessoas à espera de atendimento no Hospital Salvador.
Na semana passada, os feridos estavam em corredores e até dentro de salas de espera, enquanto aguardavam ajudavam. Em uma saída, 15 ambulâncias esperavam do lado de fora para descarregar as vítimas. Os médicos faziam operações o tempo todo sem parar.
Os protestos continuam, e os pacientes chegam a 12 por dia, disse o oftalmologista Patricio Meza, vice-presidente da associação médica do Chile.
Bolas de borracha como as que os cirurgiões removem dos rostos e dos olhos não devem ser atiradas diretamente nas pessoas, mas ricochetear no chão, 2 a 3 metros na frente de um alvo, explicou Charles “Sid” Heal, um comandante aposentado da polícia de Los Angeles que ensina técnicas de controle de distúrbios em todo o mundo. Os projéteis devem machucar sem penetrar na pele.
— Se você fura o olho de alguém, isso excede em muito o que consideraríamos um uso razoável da força — disse Heal.
Praça Dignidade
A quilômetros de La Pintana, nas proximidades da Praça Itália – epicentro das manifestações e apelidada pelos manifestantes como “Praça Dignidade” -, César Callozo foi ferido assim como Carlos, quando tocava percussão com outros músicos.
“Havia um ambiente muito lindo; de repente senti o impacto no olho e caí no chão. Depois, a dor foi embora e o rosto ficou dormente; fiquei de pé e gritei que não iam me vencer”, lembra à beira das lágrimas este construtor e músico de 35 anos, enquanto aguarda junto a outros feridos o exame médico no hospital Salvador de Santiago.
Na mesma sala, Nelson Iturriaga, de 43 anos, também espera que os médicos o ajudem a recuperar em parte a visão do olho ferido.
“Quiseram apagar o incêndio com gasolina e o povo continua nas ruas”, pedindo “dignidade”, diz Iturriaga, também construtor.
A raiva não para, o desejo de que tudo seja transformado também. O Chile ainda está queimando.
“Epidemia”
Mauricio López, chefe de turno da Unidade de Trauma Ocular do Hospital Salvador, que recebe a maioria das vítimas atingidas por esferas metálicas, lamentou a situação. “É uma epidemia”, advertiu o oftalmologista.
Segundo o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) a maioria dos ferimentos oculares registrados nas últimas semanas foram causados “por tiros de escopetas com esferas, mas também com outras armas, como o lançamento de bombas de gás lacrimogênio”.
López assegurou que em 35 casos os feridos chegaram com olhos com lesões profundas e risco quase total de perder a visão.
O governo defendeu a ação dos policiais junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, embora tenha se comprometido a limitar o uso deste tipo de munição.
Até o momento, as manifestações já deixaram 20 mortos, cinco nas mãos das forças de segurança, milhares de feridos e detidos. A crise social levou presidente Sebastián Piñera a enviar os militares para patrulhar as ruas por nove dias.
Mudanças profundas no sistema privado de pensões, que castiga a maioria com renda insuficiente, e a reforma da Constituição, herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), são os pilares das demandas de uma população que pede um país menos desigual.
O ministro da Justiça chileno, Hernán Larraín, admitiu possíveis violações de direitos humanos por parte de forças de segurança que atuaram nos protestos. Vídeos mostrando policiais chilenos cheirando cocaína antes de reprimir protestos alimentaram ainda mais as manifestações e as denúncias dos abusos.
Com quase um mês de mobilizações, os protestos seguem. Nesta sexta-feira, 15, congressistas chilenos anunciaram que o país realizará um plebiscito em abril de 2022 para estabelecer uma nova Constituição.
“O movimento me custou um olho, mas estou feliz” porque a luta por um Chile mais justo continua, diz Carlos, mostrando orgulhoso a tatuagem sobre os dedos, que forma a palavra “Liberdade”.