Complexo arqueológico é descoberto na Amazônia Central

Segundo pesquisadores, elementos fortalecem tese de que a região do Médio Solimões, no estado do Amazonas, pode ter sido densamente povoada antes da chegada dos europeus.

Com informações do Globo.

Escavações reuniram pesquisadores de várias instituições brasileiras. Foto: Bernardo Oliveira

As crônicas de Gaspar de Carvajal, padre espanhol que navegou pelo rio Amazonas no século 16, descrevem uma área repleta de aldeias indígenas. ”Encontramos muita louça dos mais variados feitios: havia talhas e cântaros enormes (…) tudo da melhor louça que já se viu no mundo, porque a ela nem a de Málaga se iguala.” Por muito tempo, essas e outras crônicas da época que relatam a intensa presença humana na região foram tidas como exageradas e fantasiosas.

Um complexo arqueológico de grandes proporções foi encontrado na região da Amazônia Central por pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), como conta a reportagem do ‘O Globo‘.

Alguns dos elementos descobertos, muitos inéditos dentro da região do Médio Solimões, indicam que a ocupação da Floresta Amazônica antes da chegada dos colonos portugueses, em 1500, pode ter sido muito maior do que se imagina.  

O trabalho começou no que os arqueólogos imaginavam se tratar de um sítio arqueológico, que logo se revelou um complexo interconectado na região de comunidades tradicionais. “Não podemos dizer que é um sítio arqueológico só. O que a gente está vendo é um complexo arqueológico de vários sítios, que podem ter histórias diferentes, mas que estão interligadas”, revela Rafael Lopes, pesquisador associado do Grupo de Pesquisa em Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural da Amazônia do Instituto Mamirauá, organização social fomentada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

Além de cerâmicas e urnas funerárias, foram encontradas sementes carbonizadas de vários vegetais, incluindo açaí e cupuaçu. A frente arqueobotânica também identificou um castanhal que, possivelmente, foi plantado por populações antigas há 500 ou 600 anos.  

Artefatos arqueológicos podem ter sido produzidos milhares de anos atrás. Foto: Bernardo Oliveira

Mariana Cassino, pesquisadora de arqueobotânica do Inpa, chama atenção para as particularidades da cultura do castanhal, que comprovam a intervenção humana no complexo arqueológico avaliado.

— Tudo indica que é uma floresta cultural, que foi sendo enriquecida e construída ao longo dos anos de ocupação da área pelas pessoas que viveram ali. Até mesmo o solo que tem indícios de transformação humana — afirma Mariana. — A castanheira é um exemplo interessante porque depende de luz para se reproduzir. Para ter novas castanheiras, você depende do empenho humano. Estão constantemente limpando, tirando cipós. Esse manejo é fundamental para a manutenção da Amazônia que temos hoje. Sem isso, ela não seria a mesma. 

Ainda segundo Rafael, alguns materiais encontrados têm entre dois mil e três mil anos de idade. Os números precisos devem ser definidos até o final do ano. O material será analisado pelo IDSM e o Inpa, em parceria com a Universidade de São Paulo (USP). As cerâmicas mais antigas, pondera o arqueólogo, indicam que essas regiões são povoadas há milênios. 

Outras intervenções humanas também foram identificadas. Os pesquisadores acreditam ter encontrado uma região que foi propositalmente planificada, possivelmente por se localizar em um terreno alagadiço, processo chamado de plataforma. No alto do monte de terra ficaram localizadas as casas das populações antigas. Estima-se que, até a chegada dos portugueses, cerca de 10 milhões de pessoas viviam na Amazônia, patamar que só voltou a ser atingido no século XX após conflitos e pragas.  

— A crença que a ecologia tinha até os anos 80 pelo menos era essa floresta intocada. O que estamos percebendo é que as populações humanas tiveram bastante responsabilidade na forma que a floresta consiste hoje — avalia Lopes. — Essas populações ribeirinhas que vivem lá hoje têm um modo de vida muito parecido com o das comunidades indígenas. Eles assumiram e adicionaram a esse legado, e dão lições sobre outras formas de ocupar e viver na Amazônia. 

Rafael Lopes, arqueólogo e pesquisador que trabalhou no sítio Foto: Bernardo Oliveira

Mariana faz análise semelhante:  

— Essas populações são fundamentais para a conservação da floresta. Nossa sociedade tende a separar a natureza e a cultura, mas as populações indígenas da Amazônia não fazem essa separação. Tendo em vista essa história de longa duração da Amazônia, de íntima ligação entre pessoas e florestas, é fundamental para pensarmos o modelo da Amazônia hoje. O modelo desenvolvimentista que está querendo ser imposto definitivamente não cabe. 

Segundo a Revista Planeta, a expedição envolveu mais de 40 pessoas durante um mês de trabalho e encontrou uma grande quantidade de vestígios arqueológicos, como as cerâmicas da tradição Pocó, que podem ser datadas de até 3 mil anos atrás. As diferentes tradições são conjuntos de vestígios em cerâmica, como vasos e urnas funerárias, com padrões como decorações e adornos similares e que estão relacionadas a períodos específicos.

“O mais impressionante do sítio foi a diversidade do contexto arqueológico que ele mostrou. Ficamos um mês aqui trabalhando e conhecemos 1% dele”, conta Lopes.

A louça descrita pelo padre espanhol assemelha-se à produção cerâmica que conhecemos hoje como Tradição Policroma da Amazônia (TPA), caracterizada por suas decorações acanaladas e pelo uso de tintas marrom, vermelha e preta sobre engobo (tipo de camada terrosa) branco.

Acredita-se que esse tipo de produção de cerâmica, de datações que vão do século 6 até a chegada dos europeus, fosse comum na Amazônia na época do contato dos colonizadores com as populações indígenas. A maior parte do material encontrado na Ponta da Castanha foi associada a essa tradição.

Padrões da Tradição Policroma da Amazônia (TPA) foram identificados em alguns dos achados. Foto: Bernardo Oliveira

Lopes lembra que, na literatura, há registros de cronistas dos séculos XVI e XVII que foram encarados muito tempo como folclóricos por historiadores. 

— Se você verificar as crônicas de viajantes que desceram o Rio Amazonas e relataram o que foram vendo escritas do século XVI, por exemplo, até a metade do século XVII, todos mencionam aldeias gigantescas, que eram vistas em sequência durante quatro horas de viagem, com apenas meia hora de intervalo entre elas. Obviamente existem exageros, mas as descrições tratam de uma quantidade gigantesca de pessoas — Recorda o arqueólogo.  

A mudança de panorama e a ideia de um bioma completamente inexplorado muda de figura após a intervenção dos portugueses na região amazônica. 

— A partir do século XVII, quando a Amazônia foi tomada pelos portugueses e o processo de colonização começou, você tem escravização, guerras de vingança e epidemias vão se espalhando até se tornarem um fator preponderante das mortes dessas populações — lembra Lopes. — A expansão colonial na Amazônia continua no século XVIII, XIX e até mesmo XX e diminui a população indígena, e a floresta tomou o lugar. Os viajantes do século XIX falam que não tem ninguém, que não foi explorada, e vão gerando perspectivas que hoje, através da arqueologia, conseguimos mostrar que são mitos.

Também participaram da expedição pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Sergipe (UFS) e da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).

Eduardo Neves, arqueólogo do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, considera que o sítio tem grande potencial para o estudo das diferentes ocupações que ocorreram nessa região da Amazônia. “Não só pela parte da arqueologia, mas essa perspectiva de integração entre a arqueologia e a história da paisagem. Temos questões muito relevantes aqui para a arqueologia de toda a Amazônia.”

Pesquisa foi realizada na Floresta Nacional de Tefé. Foto: Bernardo Oliveira


 

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