Vídeos e testemunhos sobre corpos esperando dias para serem coletados em casas e nas ruas se multiplicam nas redes sociais nos últimos dias.
Ao redor do mundo, milhares de imagens de cidades vazias e hospitais em colapso por conta da pandemia do novo coronavírus tomam conta dos noticiários.
Uma cidade no Equador vive um pesadelo a medida em que os casos do novo coronavírus se multiplicam. Os serviços funerários de Guayaquil, onde se concentram 70% dos casos de Covid-19 no país, estão sobrecarregados pelo incomum número de óbitos registrado nos últimos dias, ao mesmo tempo em que vídeos e testemunhos sobre corpos esperando dias para serem coletados se multiplicam nas redes sociais.
A província de Guayas, onde Guayaquil está localizada, registrou, ao menos segundo os dados oficiais até 1º de abril, mais vítimas da covid-19 do que países latino-americanos inteiros: 60 mortos e 1.937 infectados (1.301 apenas na capital, Guayaquil). No mesmo período, na Colômbia, por exemplo, são 16 mortos, e na Argentina são 27.
Até esta quarta-feira 1, as autoridades locais removeram 150 cadáveres que estavam em várias casas. Uma força-tarefa conjunta militar e policial criada pelo governo para lidar com essa emergência, informou o porta-voz Jorge Wated.
Wated reconheceu as falhas do “sistema funerário” em Guayaquil, o que fez com que o serviço dos médicos legistas e das funerárias não atendessem rapidamente aos casos de mortes nas residências no meio do toque de recolher de 15 horas estabelecido no país. As autoridades não confirmaram quantas vítimas da Covid-19 estão entre os mortos, mas segundo a imprensa equatoriana há vítimas de outros males entre os casos.
Segundo o jornal El Universo, até terça-feira 31 as autoridades locais registraram 163 chamados para recolherem corpos pela cidade. Ao todo, segundo a imprensa local, mais de 300 cadáveres foram coletados na última semana de março.
Como resultado, o povo de Guayaquil começou a publicar nas redes sociais vídeos de corpos abandonados nas ruas e mensagens de ajuda de parentes para enterrar seus mortos.
Nos últimos dias, equatorianos tem postado fotos e vídeos em redes sociais de corpos de vítimas em calçadas e na rua. Uma das postagens mais impressionantes é de um homem que morreu enquanto esperava numa fila de compras. Os policiais consultados pela agência de notícias Reuters disseram que o corpo demorou mais de dois dias para ser removido.
A jornalista Jésica Zambrano, do jornal El Telégrafo, contou à emissora britânica BBC que seu companheiro encontrou uma pessoa morta ao sair para fazer compras. “Anteriormente, fomos informados de que havia outros mortos a poucos metros de distância. Aqui estamos acostumados a ver mendigos dormindo nas ruas, mas como resultado dessa crise, as pessoas morrem no centro da cidade”, disse.
O canal de televisão coletou ainda relatos de famílias que tiveram que esperar mais de 24 horas para que os corpos de seus familiares fossem retirados de suas casas. A prefeita da cidade, Cyntia Viteri, que está em quarentena por ter sido infectada com o coronavírus, atribuiu a responsabilidade pela atual situação às autoridades nacionais e relatou as deficiências do sistema público do país.
Um paramédico cobre o corpo de um homem que morreu após desmaiar na calçada, durante o surto do coronavírus, em Guayaquil, no Equador – Vicente Gaibor del Pino/Reuters Pessoas ficam na fila em frente a uma loja perto do cadáver de um homem que desmaiou na calçada, durante o surto de coronavírus, em Guayaquil, no Equador -Vicente Gaibor del Pino/Reuters
Os depoimentos de parentes e vizinhos das vítimas, dados à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, são de horror.
“Meu tio morreu em 28 de março e ninguém vem nos ajudar. Vivemos no noroeste da cidade. Os hospitais disseram que não tinham macas e ele morreu em casa. Ligamos para o 911 (serviço de emergência) e nos pediram paciência. O corpo ainda está na cama, onde ele morreu, porque ninguém pode tocá-lo”, diz Jésica Castañeda, sobrinha de Castañeda.
Outra jovem de Guayaquil que mora no sudeste da cidade — ela pediu para não ter o nome divulgado — relatou que seu pai morreu em seus braços e passou 24 horas em casa.
“Eles nunca o testaram para o coronavírus, apenas nos disseram que poderiam agendar uma consulta e falaram para tomar paracetamol. Tivemos que remover o corpo com recursos particulares, porque não recebemos respostas do Estado. Nos sentimos impotentes ao ver meu pai assim e ter que sair para pedir ajuda”, disse a jovem.
À BBC, Jorge Wated afirmou que um conjunto de fatores pode estar causando o cenário na região, como o colapso das casas funerárias, a falta de capacidade dos cemitérios e as dificuldades que as famílias enfrentam para deixar suas casas em meio à pandemia e organizar os enterros.
Saúde pública
O médico Ernesto Torres acredita que a tragédia deve ser entendida como uma questão de saúde pública, pois, em suas palavras, isso “vai além do campo da medicina, porque tem a ver com as políticas do Estado e o real interesse dos governos na saúde da sua população”.
Para este especialista em saúde pública, os hospitais receberam muita importância nesta crise, mas não trabalharam no mesmo nível para atender toda a comunidade.
“Se trabalhássemos intensivamente nesse nível (desde os primeiros casos), poderíamos impedir que muitas pessoas congestionassem hospitais. Agora, os hospitais tentam apagar incêndios com baldes de água”, diz.
Nessas comunidades, especialmente nas mais periféricas, está ocorrendo “uma crise humanitária real e profunda”, nas palavras de Paúl Murillo, chefe da área de advocacia comunitária do Comitê Permanente de Direitos Humanos.
“Está certo haver isolamento nos domicílios. Mas nunca pensaram em planos que garantissem, ao menos, segurança alimentar nos bairros periféricos e marginais”, afirma.
O corpo de uma mulher é colocado dentro de um caixão após morrer em casa durante o surto do coronavírus, em Guayaquil, no Equador -Vicente Gaibor del Pino/Reuters Pessoas esperam ao lado de caixões do lado de fora do Hospital Geral Guasmo Sur, em Guayaquil, no Equador – Vicente Gaibor del Pino/Reuters
Adriana Rodríguez, professora de direito na Universidade Andina e especialista em direitos humanos, acha que não é de surpreender que os problemas sociais fiquem evidentes durante esse período em uma cidade com alta desigualdade social.
“Guayaquil é uma cidade que tem aproximadamente 17% de sua população em situação de pobreza e extrema pobreza. O que acontece agora com os cadáveres nos faz pensar sobre quais corpos são importantes e quais não são. Os cortes na saúde pública nos dizem que existem corpos que não importam”, afirma.
Nas últimas horas, a revista Vistazo informou que, na noite de 30 de março, circulou um vídeo com um grupo de pessoas no sudoeste de Guayaquil, queimando pneus para exigir a remoção de um cadáver.
“Até os moradores teriam ameaçado queimar o corpo do falecido, em protesto”, encerra a notícia.
Guayaquil já registrou 1.966 casos de Covid-19 e 62 óbitos. Segundo o vice-presidente regional Otto Sonnenholzner, o número de mortes com sintomas de coronavírus está aumentando e até 10 mortes por dia são relatadas em hospitais da cidade.
Ao todo, o Equador tem 2.748 pessoas infectadas e 93 mortos. O governo de Lenín Moreno decretou um toque de recolher para controlar a pandemia: os cidadãos do país devem deixar de circular pelas ruas às 16h.