O autor francês Frédéric Martel diz que escreveu ‘No Armário do Vaticano’ após pesquisa de 4 anos.
Fonte: Folha.
Existe um lugar neste planeta que, ao que tudo indica, é mais gay do que Castro, o emblemático bairro LGBT de San Francisco.
Um lugar onde 80% da população, estimam, é homossexual. Onde alguns de seus habitantes escapolem para regiões vizinhas atrás de prostitutos que realizem suas fantasias sexuais, de sadomasoquismo a “golden shower”.
E este lugar é a sede da Igreja Católica. A tese de “No Armário do Vaticano – Poder, Hipocrisia e Homossexualidade” é uma daquelas em que os decibéis vão longe. Feito para causar barulho, o novo livro do jornalista francês Frédéric Martel sustenta que boa parte da Cúria Romana faz bem o que a Igreja condena — transa com pessoas do mesmo sexo.
Isso pode incluir sexo com garotos de programa, alguns deles muçulmanos, segundo a obra. O michê romeno Christian, que aos pais e à mulher diz ser barman em Roma, dá detalhes dos encontros. “Um padre que quis que eu urinasse nele. Há os que querem que nos fantasiemos de mulher, de travesti. Outros praticam atos sadomasoquistas sórdidos. Um padre até quis lutar boxe comigo todo nu.”
Martel estará no dia 15 de julho na Casa Folha, em paralelo à Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, para falar sobre este título que vem arregimentando controvérsias sobretudo de setores conservadores, embora haja críticas também à esquerda.
Uma das principais críticas está no The Catholic World Report. Segundo o site, o livro tem “muitas insinuações”, com seu “recheio de fofocas”, mas “não se apresenta como um relato acadêmico e objetivo”.
Martel rebate. Sua pesquisa, ele diz, durou mais de quatro anos. Ele conta que falou com mais de 1.500 pessoas no Vaticano e em 30 países. Entre eles, 41 cardeais, 52 bispos e monsenhores, 45 núncios apostólicos e embaixadores e mais de 200 padres e seminaristas. “Todas as entrevistas foram realizadas pessoalmente, nenhuma por telefone ou email.”
O próprio papa Francisco leu o calhamaço que narra as aventuras homossexuais do clero sob sua guarda, afirma o jornalista. Um advogado de vítimas de abuso teria dito a ele que o pontífice “achou o livro bom e que ele sabia de tudo”.
Martel também aponta que suas palavras colheram elogios de vaticanólogos como Diarmaid MacCulloch, da Universidade de Oxford, e até do prócer da extrema direita Steve Bannon. O ex-estrategista de Donald Trump já declarou publicamente que “No Armário do Vaticano” é o “livro do ano” e daria um bom filme.
Martel dobra a aposta. “Todo mundo sabe que é verdade. O Vaticano é, em larga escala, um sistema homossexual.”
Parte da desconfiança vem da decisão de não expor vários clérigos que confessassem ser gay. “Tenho empatia pelos padres e bispos, porque eles são também vítimas do sistema.”
O problema, diz o autor, não é ser gay. Ele próprio é, aliás. Seria talvez ilegal e “um erro moral” expor pessoas, afirma. “Quis tirar o Vaticano do armário, não seus membros.”
Martel se inclina à esquerda, o que deixa claro ao destacar a entrevista que fez com Frei Betto, “um dos teólogos progressistas do Brasil”, a respeito do “pequeno manual sobre as questões de gênero e de orientação sexual” que publicara.
Religiosos como Frei Betto, diz, eram “claramente não gays, enquanto os cardeais e bispos que os atacavam, tanto na América Latina quanto no Vaticano, e os acusavam de ‘desviar’ da norma, eram eles mesmos, em sua maioria, homossexuais”.
Não que não haja ressalvas a seu trabalho no meio progressista. Frank Bruni, um articulista gay que aborda no jornal The New York Times vários temas LGBT, escreveu que ficou “incomodado e até um pouco assustado” com o livro do colega francês.
Na visão de Bruni, ele periga ser “menos uma avaliação construtiva do que munição para militantes da direita católica que já desejam realizar uma caça às bruxas a padres gays, muitos dos quais são servos exemplares e castos da Igreja”.
É possível ser um clérigo gay e nunca dar vazão a seus desejos. E há quem o faça às escondidas, e sem parcimônia.
Martel não economiza detalhes ao relatar as “festas químicas” no Vaticano que chegaram a ser descritas pela imprensa italiana. “Verdadeiras orgias sob uma suave luz vermelha, com um forte consumo de drogas e vodca de maconha, além de convidados muito travessos”, descreve.
Ele diz que, sim, os escândalos existem, mas seu livro “é sobre a maioria silenciosa, os sofredores, a vida dupla, a esquizofrenia e a hipocrisia da maioria dos padres e bispos que são homossexuais e não assumem”. Se o fizessem, seriam expulsos do clero. Por isso preferem se calar.
A Igreja Católica vive uma espiral de acusações contra líderes seus que teriam molestado menores de idade. Martel frisa, no entanto, que “não há conexão entre homossexualidade e abusos”.
Em geral, abusos são cometidos por homens heterossexuais, sobretudo contra mulheres. Porém, na Igreja, a maioria das vítimas são meninos ou homens, reconhece.
Por quê? “Eu diria que o problema não é a homossexualidade, mas uma sexualidade reprimida”, diz Martel. “O problema é quando você mente sobre sua sexualidade para outros e para si mesmo.”
Piora quando se é um cardeal não assumido diante de um padre abusador. “Você se sente tão culpado quanto eles e às vezes pode ser chantageado. A maioria dos bispos que protege assediadores é gay também.”
O chefe supremo da Cúria Romana é visto com simpatia por Martel. Claro que papa Francisco, de 82 anos, “é um homem de sua geração”, e, como tal, um feroz oponente do casamento gay e da teoria de gênero. “Não dá para esperar que ele seja o Orgulho Gay em Roma”, diz. “Mas ele está evoluindo.”